"Sempre tive um grande espírito de aventura e gostava de conhecer o Oriente. E o meu sonho era conhecer a Austrália." A Austrália parecia - e era -- mais perto de Macau que de Portugal e aos 23 anos, acabado de sair de um curso de Direito e a meio do estágio que não estava a ser muito interessante, o advogado Sérgio de Almeida Correia aceitou um convite para atravessar o mundo em 1986 e trabalhar como assessor jurídico nos Serviços da Marinha do território "sob administração portuguesa, a possessão oriental e última réstia do extinto império colonial luso. "Fui sozinho, mas não era uma coisa que me metesse medo, já viajava por minha conta desde os 16, 17 anos, tinha feito o interrail na Europa."
Contrastes e exílios também não lhe eram novos: nascido em Moçambique, viera para Portugal em 1973 para fazer um ano na escola e acabara por ficar na sequência do 25 de Abril. Ainda assim, a experiência colonial de Moçambique não o preparou para a de Macau. "A primeira coisa que estranhei foi o facto de ninguém falar português e de os portugueses não falarem chinês. Os chineses falavam chinenglish, uma mistura de chinês e inglês. Fui para o hotel Metrópole, onde costumavam ficar os portugueses, e os empregados eram todos chineses e só se falava inglês. Portugueses, no hotel, só os jornais." Desde o início então a consciência de três mundos - o da comunidade portuguesa, "bastante fechada", e os da comunidade chinesa e macaense. "Havia uma parte da comunidade portuguesa que não estava tão dependente da administração pública e tinha um espírito mais aberto, com mais contacto com a comunidade chinesa, mas a maioria..."
A maioria circulava num universo restrito de casas de portugueses, encontro de portugueses, cafés e restaurantes de portugueses. O Bolo de Arroz, um café no centro da cidade, perto do Leal Senado, vendia bolos portugueses, café português e pão português. Era como outro café qualquer de Portugal - um café de qualquer bairro de terra portuguesa - mas ali, no meio da China. Como grande parte dos estabelecimentos chineses eram como outros quaisquer na China mas ali, num território de administração portuguesa. Ir a uma loja chinesa implicava falar inglês ou comunicar por gestos. Sérgio quis contrariar a tendência geral e aprender mandarim. "Andei naquilo cinco ou seis meses, uma hora por dia, até perceber que para fazer aquilo a sério teria de estudar pelo menos três horas diárias. Aí desisti, com muita pena minha."
Esta incomunicabilidade, que qualquer visitante português de Macau identificava à chegada e ressentia ao longo da estada como algo que fazia dele um absoluto estrangeiro numa terra alegadamente semi-portuguesa é provavelmente uma das características mais estranhas da presença de Portugal naquele território. Ana Paula Laborinho, 52 anos, professora da Faculdade de Letras de Lisboa, passou ao todo onze anos na península, em duas ocasiões (1988/1992 e 1995/2002) e está, pelas suas funções e especialidade (foi presidente do Instituto Português do Oriente), particularmente bem apetrechada para o diagnóstico. "Sou das áreas das literaturas mas tenho um projecto sobre o orientalismo português. O nosso ciclo colonial só acabou em 99 em Macau. E o que é impressionante é que nunca conhecemos a parte chinesa, nunca investimos. Os reinóis - que era o nome que davam à pessoas que vinham do reino para 'governavam aquilo' - iam e vinham. Só muito tardiamente é que começaram a entrar chineses para postos de chefia. E os portugueses nunca aprenderam chinês. Estava-se ali com tudo como em Portugal e não conseguimos ver longe. Tínhamos duas cidades uma encostada à outra que não se tocavam, de costas..."
A determinação da distância não terá sido só responsabilidade dos portugueses: os chineses proibiam os casamentos interraciais (seja lá uma raça o que for) o que levou a que a miscigenação se efectuasse com asiáticas não chinesas. "O que significa que os macaenses, aliás uma comunidade difícil de definir, não tinham de modo geral ascendência chinesa. Os macaenses frequentavam a escola portuguesa e eram analfabetos em chinês. Eram até obrigados, como nós éramos, a decorar as linhas férreas do império como nós. Isto dá a noção do que era aquele regime autista pré-25 de Abril, e foi um drama para aquela gente. A partir da década de 80, 90 começou a haver uma enorme população chinesa - eram 97% dos habitantes - que não tinha sido escolarizada em português, de modo que havia dois mundos. E só no final da década de 80 é que se começou a ensinar o português como língua estrangeira, o que significa que antes, para aprender português, só começando na 1ª classe. Era a ideia de um Portugal extensivo em que todos eram filhos da pátria..."
Um Portugal que nem nos anos noventa oferecia, nas escolas públicas, o chinês como segunda língua obrigatória. Ana João Camões, 21 anos, estudante de Ciências da Comunicação na Universidade Nova, que foi com os pais aos dois anos e meio para Macau e lá ficou até aos 12 nunca aprendeu qualquer das línguas chinesas - o mandarim, falado na generalidade da China e língua oficial ou o cantonês, mais falado em Macau - nas escolas que frequentou. "Tenho pena, claro. Acho que era possível ter a disciplina como opção, mas não tenho a certeza. Os meus pais mais tarde disseram-me que se soubessem que iam estar lá tanto tempo me teriam inscrito numa escola chinesa. Claro que na altura era muito miúda e não pensava nisso mas agora acho que teria sido uma mais valia para nós - para os portugueses - aprender chinês." A falha levou-a naturalmente a relacionar-se com portugueses e macaenses. "No último ano em que lá estive a minha turma tinha muitos chineses mas não ficámos amigos, porque tendiam a organizar-se em grupinhos. Acho que eles não se sentiam tanto à vontade a falar português, lembro-me de que os professores estavam sempre a dizer para não falarem chinês uns com os outros."
Para Manuel José Matos Almeida, 64 anos, a situação implicou um tradutor permanente. Médico dermatologista do quadro do hospital de Santa Maria (agora aposentado), chegou a Macau em 1993 e foi trabalhar para o hospital de São Januário, onde cada médico português tinha um intérprete destacado. "A maior parte dos meus clientes eram chineses e apesar de eu ter começado a estudar mandarim, não me percebiam nem eu a eles. Se é um escolho na relação médico-doente? Lá isso é, mas eu normalmente tenho muita paciência." A maioria dos médicos eram já na altura chineses (os portugueses estavam em lugares "seniores") e alguns deles aprenderam português e acabaram por fazer a especialidade em Portugal. "Portugal nunca fez esforço para integrar os chineses ou para se integrar nos chineses", pontifica Matos Almeida, que ainda assim se fartou de viajar pela China, até para "praticar o mandarim" que se esforçou por aprender num curso iniciado no hospital. "Começámos por ser 30 e no fim éramos dois ou três. As pessoas desistiam, aquilo é difícil, é preciso estudar, treinar e pessoas de 40, 50 anos começam a ver que não têm conseguem... Eu próprio não avancei muito. Precisaria de me dedicar àquilo e não à dermatologia..." Velejador e bom viajante, o médico aproveitou bem os anos macaenses. "Gostava muito da situação em que Macau estava, andava muito de barco à vela. A cidade é pequena, é uma coisa urbana, o grande espaço era o mar. A China não tem muito para ver, é tudo muito igual, vê-se uma vez e está visto..." Come-se uma vez e está comido: "Comi larvas de abelha fritas, veja lá. E baratas fritas. Eram uma baratas de água, umas coisas pretas. Eram fritinhas, o molho era bom, e já tinha bebido um bocado..." Ri. Nem tudo é prazer e passagem, no entanto. "Macau progrediu muito na altura do último governador [General Rocha Vieira], em termos de saúde, de escolas, etc. E o governo chinês apanhou essa onda de desenvolvimento das políticas sociais. Macau tinha uma assistência social gratuita para crianças até 12 anos, para grávidas e para pessoas com mais de 65 anos; os funcionários não pagavam taxas moderadoras no funcionalismo... Tenho a noção de que a população estava muito mais segura em Macau do que em Hong Kong." A noção de segurança fê-lo não hesitar perante a hipótese de ficar para além da presença da administração portuguesa. "Pensei, se aceitarem e se houver uma continuidade relativamente doce, fico. E fiquei - não senti diferença praticamente nenhuma. O director do hospital passou a ser chinês, mas nunca tive problemas nem com a direcção do hospital nem com nada. Vim-me embora porque quis, não porque não me quisessem lá. Às tantas Macau é pequeno..."
Ana João concorda. Aos 12 anos, quando se veio embora, "já estava um bocado farta". Mas isso não a impediu de ter, na comparação com Castelo Branco, para onde foi viver, sentido que Macau era muito mais desenvolvido, cosmopolita, frenético. "Lá em andava de autocarro, ia para as salas de jogo, aqui e ali, a vida era muito mais acelerada. Em Castelo Branco quase não havia transportes públicos, e não conhecia ninguém. Tive muitas saudades. Depois quando vim para Lisboa, para a faculdade, senti-me mais adaptada." Ainda "uma boa parte macaense", apesar de citar Pessoa para se dizer "estrangeira em toda a parte", Ana planeia voltar ao sítio onde foi feliz, mas com receio. "Tenho medo de me desiludir, dos confrontos com as memórias. As pessoas romanceiam sempre a infância." Viver lá, nunca: "Seria alimentar uma coisa que já não existe, aqueles tempos... Falaram-me da hipótese de estagiar na Tribuna de Macau mas acho que não quero."
As saudades distribuem-se, depois de nove anos (regressou em 2000 por duas semanas e depois nunca mais) sem ver o lugar onde cresceu. "Não sei qual o primeiro sítio que vou querer rever - já pensei nisso. Acho que mais a zona da minha casa, aquelas ruas todas, o Leal Senado. E comer um bom Dim Sum (traduzido à letra, "beber chá", é o nome dado a uma série de pratos feitos a vapor que são geralmente servidos até à hora do almoço e que costumam reunir as famílias chinesas nas manhãs de domingo). Cá encontrei um restaurante em Arroios, onde encontro toda a gente d Macau. Mas acho que do que tenho mais saudades mesmo é das viagens. De viajar constantemente, sobretudo pela Ásia ( por países como a Tailândia, onde ia praticamente todos os anos pelo Natal, a Índia, a Malásia...). Daquela cultura asiática que dificilmente encontro por aqui. E também, obviamente, de todo o multiculturalismo associado a Macau. Acho que foi essa a herança mais importante que recebi de toda esta minha experiência."
Ana Paula Laborinho alinha com Ana João. "Devo dizer que não tinha uma ideia precisa do que esperar quando cheguei a Macau pela primeira vez, com 30 anos. E gostei muito, talvez numa atitude romântica. Gostei muito da parte chinesa, onde ninguém nos conhecia e não conhecíamos ninguém, onde ninguém nos percebia e nós não percebíamos nada, andar por ali a ver as lojinhas 'das maravilhas', atravessar o rio... Era quase ficção." Laborinho ficou para além da transição e testemunhou uma fase muito difícil, aquela que a China passou pós-Tiananmen. "Temos a ideia de que os orientais aguentam tudo, e quando aquilo acontece percebemos que eles têm uma energia de um interior muito fundo e que pode deslocar montanhas. Lembro-me que havia um tufão, que não é brincadeira, mas que mesmo assim foi toda a gente para a rua para uma manifestação. Foi um período de muita esperança. E depois veio a dureza a seguir, com aulas de educação política com megafone." Com as funções de cônsul adjunta no pós Portugal, Ana Paula assistiu à entrada das tropas chinesas. "Estávamos mais ou menos preparados mas foi complicado, assustador. Nos primeiros dias sentia-se uma paz esquisita. Éramos tratados como colonizadores. Não foi fácil de viver. Passado um ano as coisas começaram a ficar menos pesadas - o ar limpou." Com saudades da filha, que viera para Portugal em 1998, decidiu voltar há sete anos, apesar de quando lá volta "sentir uma grande paz interior, como se fosse aquele o meu lugar". Uma paz que transporta como dádiva do Oriente. "Acho que fiquei com algo - há uma impetuosidade que tinha e deixei de ter. Sou muito mais serena, com mais capacidade de espera." Ri. "Se calhar também é da idade. Mas eu era muito planificada e hoje percebo que há um fluxo que não controlamos. É a aceitação do incontrolável que me traz uma grande paz."
O que é que eu trouxe de Macau? Sérgio de Almeida Correia, que confessa sentir-se "um pouco estrangeiro em Portugal", sorri do outro lado da fibra óptica ou lá o que é que agora transmite as conversas telefónicas (vive em Faro). "O melhor recuerdo de Macau que tenho é a minha mulher". Conheceu-a lá, uma expatriada como ele, na segunda temporada que passou na porta da baía, e casaram em 1995. O resto que trouxe, para além de uma tese de mestrado sobre "a classe política macaense" e, afiança, muitos inimigos fruto de críticas desferidas contra a administração do território em jornais, muitos amigos cá e lá e "os cheiros, os aromas - é uma das boas recordações que tenho é sentir aquele cheiro da china" e a experiência de comer cão ("Não gostei, parecia carne de vaca cozida com um sabor mais intenso") e abalone (um molusco caríssimo que "se come uma vez na vida" e, afiança, é "divinal"), foi "a amargura de saber que devíamos ter feito mais e melhor".
A principal crítica que faz é a de não se ter deixado "uma classe política formada solidamente, sobretudo em termos de direitos humanos". Aponta a diferença entre Hong Kong e Macau nessa matéria. "Não o fizemos noutros lados, em África, claro, mas ali houve mais tempo: mais 20 anos. A paixão que sinto por Macau e as suas gentes é inversamente proporcional à revolta que tenho por não termos sido capazes de fazer mais e melhor por Macau e pelas suas gentes enquanto lá estivemos e fomos administração. Muito particularmente no campo da construção de uma cultura cívica de participação, de uma intervenção activa, de uma cidadania reforçada. A nossa insignificância hoje enquanto país no contexto asiático é apenas uma consequência da deficiente estratégia, das vistas curtas de quem nos governou e de quem governou Macau na última década, mais preocupado em garantir o seu próprio futuro, a sua reforma, o seu pé-de-meia, do que assegurar o futuro. Não tivesse Macau o povo que tem e não fosse a China a grande nação que é e Portugal há muito que estaria esquecido naquelas paragens."
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