Por Ana Cristina Pereira (texto), Paulo Pimenta (fotos), em Madrid
O frigorífico está quase, quase vazio. Faltam os legumes que
os pais cultivam na quinta. Leonor Carvalho não vai a casa há dois meses.
Costuma ir de 15 em 15 dias - tantas quantas ia, quando morava no Porto. De
Madrid a Chaves, quatro horas e meia de carro. Veio, sozinha, há três anos e
meio. Espanha era uma espécie de esponja. "Era só querer vir." Atiçou
as amigas Rita Almada e Cármen Oliveira. "Andavam por Portugal aos
tropeções!" Licenciadas, poliglotas, livres, não precisavam de um pai ou
de um marido a chamá-las.
As relações entre os dois países estreitaram-se. A economia espanhola olha para
Portugal como um mercado natural (a portuguesa tenta) e os portugueses olham
para Espanha como um espaço de mobilidade natural. Em cinco anos, a comunidade
disparou: 80.846 em 2005, 148.154 em 2009. Vieram eles e vieram elas. É uma das
novas tendências deste século. Embora os homens prevaleçam neste renovado
processo migratório, há cada vez mais mulheres a avançar por sua própria conta
e risco. "Tivemos há décadas uma vaga de fundo de emigração feminina
relacionada com a recomposição familiar; esta é predominantemente
laboral", aponta o sociólogo Eduardo Vítor Rodrigues. A vaga de mulheres
que partem sós é mais jovem e mais qualificada do que a vaga de homens que
partem sós, explica o investigador.
Qualquer coisa as puxa para Madrid, Barcelona, Londres, repara Albertino
Gonçalves, outro sociólogo. Expectativas de trabalho que só é possível
satisfazer em cidades de relevo na economia global, mas também uma certa forma
de estar - de viver - que atira o compromisso e a maternidade para mais tarde
(ou para nunca).
Uma chuva miudinha molha a noite de sábado. Leonor calça umas botas castanhas
sobre umas calças justas. Rita Almada veste uma mini-saia azul por cima de umas
meias pretas. Palmilham ruas apinhadas de gente que transborda de bares, todas
de copo na mão. Entram num pequeno restaurante de tapas. Não tardam a aparecer
Cármen e Rita Matos Cruz. Leonor gasta menos dinheiro quando vai a Chaves do
que quando fica em
Madrid. "Aqui, meto-me na má vida!" Que não se
assustem lá na terra. Má vida é boa vida. Às vezes, um vizinho pergunta-lhe:
"Quando voltas?" E ela sorri: "Nunca." Que há para ela em
Chaves? "Em Madrid, quando duas velhas se encontram, não perguntam pelas
doenças. Em Madrid, duas velhas encontram-se e uma diz à outra: "Hola,
guapa! Cuando vamos por alli?" Recrutaram-na em Lisboa para trabalhar
em Madrid. Volvido um ano, saltou de uma pequena empresa para numa
multinacional de prestígio na área da tecnologia. É responsável pelo marketing.
Não acredita que desde Lisboa conseguisse aceder a um cargo de tanta
responsabilidade.
Ninguém a pára. Enfia-se no Smart, liga o GPS sem desligar o i-phone que parece
doido de tanto tocar: "Estou integrada na empresa e na cidade. Para alguém
de Chaves, a integração é mais fácil aqui do que em Lisboa. Madrid é uma cidade
de rua. O horário prevê duas horas de almoço. No final do dia, tomas sempre
umas cañas com os teus colegas."
Rita adora esta sensação permanente de festa. É como se nunca alguém pudesse
sequer queixar-se de solidão. No Porto, a vida parecia esvair-se em trabalho
feio para comprar e possuir. Veio visitar Leonor e esgaravatou empregos. Um mês
depois, estava em
Palma de Maiorca a coordenar um departamento internacional.
Mais um ano, estava aqui, numa multinacional.
Cármen procurou de longe. Dava a morada e o número de telefone de Leonor e era
ela que lhe atendia as chamadas e lhe agendava as entrevistas para as sextas à
tarde ou para as segundas de manhã. "Trabalhava perto do aeroporto. Num
instante, apanhava um avião e punha-me aqui."
As distâncias encurtaram muito com as vias rápidas, com as companhias aéreas de
baixo custo. Combinam boleias no Fórum Tugas Madrid com gente que nunca viram.
Aproveitam as promoções e compram passagens áreas às dezenas por um punhado de
euros. As famílias resignam-se a estas opções de residência. Algumas, como a de
Rita Almada, ainda resistiram. Outras, como a de Cármen, nem piaram: "Já
vivia sozinha. Os meus pais só disseram: "A vida é tua."" Muito
pelo seu domínio de línguas estrangeiras, depressa galgou terreno. Agora, é country
manager de uma empresa portuguesa de mobiliário hoteleiro que se está a
expandir para Espanha. Os seus períodos alinharam-se quando as três raparigas -
agora com 33 anos - dividiam apartamento. Já não moram as três. Leonor mora
sozinha num T1 de linhas simples - decorado com brancos, pretos, vermelhos.
Rita vive com o namorado espanhol - que esta noite ficou em casa. E Cármen
partilha um apartamento com três pessoas: de nacionalidades italiana,
finlandesa, portuguesa. Não lhes falem em voltar para Portugal. Não
tão cedo. Apesar da crise, o mercado é grande. E essa dimensão segreda-lhe que,
se as coisas correm mal num sítio, há sempre outro. E essa dimensão segreda-lhe
que é possível subir até ao topo do topo. Eduardo Vítor Rodrigues está curioso:
"Para já é cedo, mas valerá a pena saber como é que se reconfigurará as
representações relativas à família. Era interessante perceber se há angústia,
ou se esta mudança migratória é mesmo acompanhada por uma mudança de papéis
sociais."
Público, aqui.