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As mulheres já não esperam que os homens as chamem
2010-03-06
É uma das tendências da emigração reconfigurada. As portuguesas já partem por sua livre iniciativa. Por razões laborais

Por Ana Cristina Pereira (texto), Paulo Pimenta (fotos), em Madrid

O frigorífico está quase, quase vazio. Faltam os legumes que os pais cultivam na quinta. Leonor Carvalho não vai a casa há dois meses. Costuma ir de 15 em 15 dias - tantas quantas ia, quando morava no Porto. De Madrid a Chaves, quatro horas e meia de carro. Veio, sozinha, há três anos e meio. Espanha era uma espécie de esponja. "Era só querer vir." Atiçou as amigas Rita Almada e Cármen Oliveira. "Andavam por Portugal aos tropeções!" Licenciadas, poliglotas, livres, não precisavam de um pai ou de um marido a chamá-las.

As relações entre os dois países estreitaram-se. A economia espanhola olha para Portugal como um mercado natural (a portuguesa tenta) e os portugueses olham para Espanha como um espaço de mobilidade natural. Em cinco anos, a comunidade disparou: 80.846 em 2005, 148.154 em 2009. Vieram eles e vieram elas. É uma das novas tendências deste século. Embora os homens prevaleçam neste renovado processo migratório, há cada vez mais mulheres a avançar por sua própria conta e risco. "Tivemos há décadas uma vaga de fundo de emigração feminina relacionada com a recomposição familiar; esta é predominantemente laboral", aponta o sociólogo Eduardo Vítor Rodrigues. A vaga de mulheres que partem sós é mais jovem e mais qualificada do que a vaga de homens que partem sós, explica o investigador.

Qualquer coisa as puxa para Madrid, Barcelona, Londres, repara Albertino Gonçalves, outro sociólogo. Expectativas de trabalho que só é possível satisfazer em cidades de relevo na economia global, mas também uma certa forma de estar - de viver - que atira o compromisso e a maternidade para mais tarde (ou para nunca).

Uma chuva miudinha molha a noite de sábado. Leonor calça umas botas castanhas sobre umas calças justas. Rita Almada veste uma mini-saia azul por cima de umas meias pretas. Palmilham ruas apinhadas de gente que transborda de bares, todas de copo na mão. Entram num pequeno restaurante de tapas. Não tardam a aparecer Cármen e Rita Matos Cruz. Leonor gasta menos dinheiro quando vai a Chaves do que quando fica em Madrid. "Aqui, meto-me na má vida!" Que não se assustem lá na terra. Má vida é boa vida. Às vezes, um vizinho pergunta-lhe: "Quando voltas?" E ela sorri: "Nunca." Que há para ela em Chaves? "Em Madrid, quando duas velhas se encontram, não perguntam pelas doenças. Em Madrid, duas velhas encontram-se e uma diz à outra: "Hola, guapa! Cuando vamos por alli?" Recrutaram-na em Lisboa para trabalhar em Madrid. Volvido um ano, saltou de uma pequena empresa para numa multinacional de prestígio na área da tecnologia. É responsável pelo marketing. Não acredita que desde Lisboa conseguisse aceder a um cargo de tanta responsabilidade.

Ninguém a pára. Enfia-se no Smart, liga o GPS sem desligar o i-phone que parece doido de tanto tocar: "Estou integrada na empresa e na cidade. Para alguém de Chaves, a integração é mais fácil aqui do que em Lisboa. Madrid é uma cidade de rua. O horário prevê duas horas de almoço. No final do dia, tomas sempre umas cañas com os teus colegas."

Rita adora esta sensação permanente de festa. É como se nunca alguém pudesse sequer queixar-se de solidão. No Porto, a vida parecia esvair-se em trabalho feio para comprar e possuir. Veio visitar Leonor e esgaravatou empregos. Um mês depois, estava em Palma de Maiorca a coordenar um departamento internacional. Mais um ano, estava aqui, numa multinacional.

Cármen procurou de longe. Dava a morada e o número de telefone de Leonor e era ela que lhe atendia as chamadas e lhe agendava as entrevistas para as sextas à tarde ou para as segundas de manhã. "Trabalhava perto do aeroporto. Num instante, apanhava um avião e punha-me aqui."

As distâncias encurtaram muito com as vias rápidas, com as companhias aéreas de baixo custo. Combinam boleias no Fórum Tugas Madrid com gente que nunca viram. Aproveitam as promoções e compram passagens áreas às dezenas por um punhado de euros. As famílias resignam-se a estas opções de residência. Algumas, como a de Rita Almada, ainda resistiram. Outras, como a de Cármen, nem piaram: "Já vivia sozinha. Os meus pais só disseram: "A vida é tua."" Muito pelo seu domínio de línguas estrangeiras, depressa galgou terreno. Agora, é country manager de uma empresa portuguesa de mobiliário hoteleiro que se está a expandir para Espanha. Os seus períodos alinharam-se quando as três raparigas - agora com 33 anos - dividiam apartamento. Já não moram as três. Leonor mora sozinha num T1 de linhas simples - decorado com brancos, pretos, vermelhos. Rita vive com o namorado espanhol - que esta noite ficou em casa. E Cármen partilha um apartamento com três pessoas: de nacionalidades italiana, finlandesa, portuguesa. Não lhes falem em voltar para Portugal. Não tão cedo. Apesar da crise, o mercado é grande. E essa dimensão segreda-lhe que, se as coisas correm mal num sítio, há sempre outro. E essa dimensão segreda-lhe que é possível subir até ao topo do topo. Eduardo Vítor Rodrigues está curioso: "Para já é cedo, mas valerá a pena saber como é que se reconfigurará as representações relativas à família. Era interessante perceber se há angústia, ou se esta mudança migratória é mesmo acompanhada por uma mudança de papéis sociais."

Público, aqui.

 

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