Maria Ferreira está a refazer o guarda-roupa - e a enchê-lo
de vestes leves, claras. Daqui a uns dias, engrossa o número de portugueses que
arregaçam as mangas em Angola. São cada vez mais. Embalados por um fluxo de
vaivém - até por ser difícil obter um visto de trabalho.
Ninguém sabe ao certo quantos portugueses residem em Angola. Só daqui a quatro
anos, quando o Estado fizer o recenseamento da população - os últimos censos
datam de 1970. Diversos indicadores, porém, atestam uma espécie de inversão de
papéis desde que o contexto político angolano se alterou (com a morte de Jonas
Savimbi, o líder da UNITA, em Fevereiro de 2002, veio a paz, a reconstrução, o
desenvolvimento económico).
As remessas enviadas de Angola para Portugal quintuplicaram entre 2004 e 2009,
enquanto as remessas enviadas de Portugal para Angola parecem ter estabilizado
(ver quadro). O saldo era de 9,5 milhões e é agora de 91,5 milhões. Um reflexo
do movimento migratório, claro. Pelas contas do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras, em 2008 havia 27.619 angolanos em Portugal, mais dois mil do que em
2003. Pelas contas da Direcção-Geral dos Assuntos Consulares, em 2009 havia 74
mil portugueses em Angola, mais 53 mil do que em 2003.
Como em qualquer parte do mundo, muitos portugueses não se registam nos
serviços consulares e muitos dos que se registam não vão lá avisar quando fazem
as malas e tornam a casa. Mas o número de vistos emitidos pelo Consulado de
Angola em Portugal fortalece esta ideia de presença a alargar: saltou de 23.250
em 2008 para 46.486 em 2009 (aqui cabem vistos de tipo ordinário, de curta
duração, privilegiado, trabalho, trabalho para a reconstrução nacional,
permanência e outros).
Maria Ferreira viajará com um visto ordinário - próprio para prospecção de
mercado. Quer ver se se adapta à empresa portuguesa, se a empresa portuguesa se
adapta a si. Adivinha choque social, cultural, mas também aventura, deleite.
Vai pelo desafio profissional: irá coordenar um call center na área da
aviação - "Se tudo correr bem, daqui a três meses estarei cá a pedir visto
de trabalho."
Pode não ser tão fácil como aquela licenciada em Turismo de 30 anos agora
imagina. Castro Soares, por exemplo, anda neste vaivém há um ano e meio. Saía
com o visto ordinário renovável até três meses. Da última vez, o consultor para
a área da televisão inquietou-se: viu protelada até à hora do embarque a
devolução do passaporte, que entregara para a prorrogação do visto. "Estou
cansado dessa conversa. Já falei com a empresa. Agora, fico um mês lá, um mês
cá."
Não foi possível obter dados sobre portugueses forçados a abandonar o país - o
Consulado de Angola em Lisboa não quis prestar declarações e os serviços
consulares de Portugal em Angola dizem não ter nota desses casos. Mas saltam de
boca em boca histórias de pessoas detectadas a trabalhar ilegalmente.
"As autoridades estão a ser muito rígidas com a emissão de vistos de
trabalho e muitos aventuram-se com vistos de turista, enquanto o visto de
trabalho não chega", diz o sociólogo Eduardo Vítor Rodrigues. "Estamos
a falar de um país com um modelo que passa muito pela economia informal, o que,
na verdade, é fraude. O visto de trabalho só se consegue depois de algum tempo
e numa lógica de apadrinhamento - seja real ou falso." O suborno, em
Angola, chama-se "gasosa".
A par da mão-de-obra qualificada, avançam para Angola investidores que tentam
expandir ou criar as suas empresas. O sector da construção civil e das obras
públicas é o maior empregador, graças à posição que as majors portuguesas
conquistaram no mercado angolano. Os "tugas" sobressaem também no
turismo, na informática, no comércio.
Nuno Carvalhal foi um dos pioneiros - embarcou em 1999, pouco depois de acabar
o curso de Engenharia Civil, estava o país ainda em guerra civil. Ia
por dois anos, ficou quatro. "Tive um princípio de febre tifóide. Depois,
nada. Parece que o corpo se adapta." Porque não ficou mais tempo?
"Sempre encarei aquela situação como uma experiência de tempo
limitado."
Problemas de adaptação
É quase sempre assim. "O projecto de ida é de curtíssima duração",
observa Eduardo Vítor Rodrigues. Por vezes, prolonga-se. Até porque, diz quem
por lá trabalha, as empresas gostam de garantir continuidade e algumas
pressionam os trabalhadores a ficar.
"Com a crise, as estadias vão prolongar-se mais do que o previsto",
arrisca Eduardo Vítor Rodrigues. As opções por cá reduziram-se. O mercado por
lá já se readaptou. Os salários tornam-se menos chorudos. Ainda assim, parecem
compensar: Maria Ferreira vai com um contrato de um ano, a ganhar bem mais do
dobro do que aqui, com casa, transporte casa-trabalho, seguro de saúde, duas
viagens Angola-Portugal por ano.
Pode ser duro. Que o diga Carvalhal: "É um país do terceiro mundo. Muitas
vezes, não funciona isto, não funciona aquilo, não há isto, não há aquilo. E há
a distância, a saudade. Tive um colega que esteve lá seis meses e que passou o
tempo livre todo em casa, ligado à Internet, a falar com a namorada. Mas também
há quem arranje família e já não volte."
"Há, em Portugal, uma idealização de África; um certo saudosismo, mesmo em
pessoas que nunca estiveram lá", nota a investigadora Cláudia Castelo. Mas
nem só isso os empurra: outros factores se levantam, como o dinheiro ou o gosto
pelo desafio. Castro Soares, por exemplo, já vivera dois anos na Alemanha e um
na Macedónia: "Ali, em Luanda, sou capaz de fazer um programa com metade
das pessoas - um não veio, outro está a comer, outro foi à casa de banho.
Trabalha-se com a corda da garganta."
Ali, não basta um canudo, também é preciso talento para improvisar. "Lá, é
mais difícil pôr as coisas a funcionar, temos de puxar pela cabeça, de
desenvolver a componente criativa; cá, há mais exigência, mais qualidade",
volta Carvalhal. Por isto, regressar também pode ser difícil.
Público, aqui.