Pedro Pedreiro (chamemos-lhe
assim*) trabalha nas obras desde que chegou ao Luxemburgo, há 20 anos. Faz
parte dos milhares de pedreiros e carpinteiros de cofragem ("maçons")
que a convenção colectiva do sector agrupa na categoria B, e está no terceiro
escalão. Na gíria da convenção colectiva e para efeitos salariais, é um B3.
Isto quer dizer que este carpinteiro é capaz de trabalho autónomo, de ler uma
planta de construção e de executar as indicações de um "croquis". Já
teve 23 homens a seu cargo durante três anos, e a empresa onde trabalha ficou
"muito orgulhosa" com o seu trabalho. Mas para passar ao escalão
seguinte (chefe de equipa) e passar a receber um salário de acordo com as
funções que já desempenha, a lei luxemburguesa exige que as suas competências
sejam certificadas pelo IFSB (Institut de Formation Sectoriel du Bâtiment), um
instituto criado em 2002 para dar formação aos trabalhadores da construção. No
exame de aptidão, Pedro chumbou duas vezes e foi obrigado a frequentar a
formação para B2, um grau abaixo do que exerce há 20 anos. Mas no exame final
do curso de B2, voltou a chumbar.
"Correu mal por eu não perceber o francês. Eles
deviam primeiro dar uma formação em francês ou dar as aulas em português,
porque senão só facilitam a vida aos luxemburgueses, aos belgas e franceses. E
não são eles que vão ensinar os portugueses a trabalhar!", queixa-se.
"O nosso problema é falarmos sempre com portugueses. Eu compreendo o
francês e a falar desenrasco-me mais ou menos, mas a escrever e a ler tenho
dificuldades", admite.
"FRANCÊS É A MAIOR DIFICULDADE"
Pedro não é caso único, garante José Pinto, presidente do sindicato da construção na OGB-L. "Conheço excelentes trabalhadores que chumbaram três vezes no exame". O sindicalista vem defendendo que o IFSB dê formação em português - uma proposta que a OGB-L lançou em 2008 (ver caixa) -, com formadores que poderiam vir do Instituto de Formação Profissional em Portugal.
"Actualmente,
é a língua portuguesa que reina no 'chantier' [estaleiro de construção]. Em
algumas empresas, 75 % dos trabalhadores são portugueses. Temos jugoslavos,
franceses, belgas e falam todos português, e quando não falam compreendem. Na
minha empresa, até um luxemburguês que lá temos fala português", explica
ao CONTACTO.
Se o português é língua franca nas obras, na formação
profissional é um "handicap". "Há pessoas que trabalham há 20
anos no Luxemburgo e não falam uma palavra de francês. Algumas são analfabetas.
'Oui, chef', 'non, chef', é tudo o que sabem dizer". É o caso de
Fernando*. "Sei fazer o meu nome e pouco mais. Francês não falo
nada", diz este operário de 56 anos. E conta a história de quando o chefe
lhe veio dizer que pusesse óculos de protecção. "Eu respondi-lhe 'Oui' mas
não percebi nada, e ele não percebia porque é que eu dizia que sim e não punha
os óculos".
Fernando é "um excelente carpinteiro de
cofragem", garante José Pinto, tal como José*, de 52 anos, que só tem a
quarta classe e fala um francês rudimentar. "Mas se mandarmos estes homens
fazerem a tal formação, daqui a vinte anos ainda não passaram". Riem-se os
dois e concordam. "Eu já não tenho cabeça para isso", desculpa-se
José. Mas Fernando, analfabeto, não é tão pessimista: "Eu era o mais velho
da família e não pude ir à escola, tive de ir trabalhar para ajudar os meus
irmãos. Mas agora em Portugal há velhos de 70 anos a aprender computadores. Há
sempre tempo para aprender".
APRENDER A APRENDER
António Ferreira da Costa chegou ao Luxemburgo em 1988 e teve de se adaptar às circunstâncias.
"Nos primeiros cinco ou seis
anos foi difícil, porque trabalhei com italianos. Aqui há uns anos, eu falava
melhor o italiano que o francês. Depois comprei um dicionário e comecei a
traduzir algumas palavras, e agora dá para desenrascar em qualquer parte onde
vá, mas nas coisas mais complicadas prefiro pedir ajuda a alguém".
Tem 47 anos e a quarta classe. No exame de aptidão do
Instituto de Formação para o Sector da Construção, um teste prévio obrigatório
para ser admitido nos cursos, chumbou. Ele e mais 21 pessoas. "Éramos 27,
todos portugueses. Só passaram seis".
Apesar de ter a categoria profissional de B2 (a meio
do escalão) há 22 anos, teve de recomeçar do zero e frequentar o curso para o
grau inferior, e as dificuldades que encontrou não foram só linguísticas.
"[O curso] havia de estar traduzido para
português. É a primeira dificuldade para nós. Há palavras que não conhecemos e
temos de perguntar ao monitor. Uma vez nem o monitor sabia o que aquela palavra
queria dizer. Depois, o pessoal é especialista a trabalhar, e eles dão muita
matéria que não se aplica na realidade".
O que lhe valeu foi que a formadora "falava
devagarinho e traduzia algumas coisas para português". "E depois
havia lá os que falavam bem o francês, e traduziam-nos. Ajudávamo-nos uns aos
outros".
"Em muitos casos, as designações técnicas não
são as que os trabalhadores conhecem", explica o presidente do sindicato
de construção da OGB-L. "Às vezes chama-se a um instrumento 'um chavelho',
toda a gente diz 'passa-me o chavelho' e toda a gente sabe o que é, mas as
pessoas não sabem o nome técnico", observa José Pinto. O que não os impede
de serem bons profissionais, garante. "Uma vez um formador disse-nos: 'O
que é que vocês estão aqui a fazer [na formação para B1]? Vocês sabem mais que
muitos B2 ou B3 que passaram por aqui, só que eles passaram o teste [de
admissão] e vocês não!", conta António da Costa.
"A gente sabe o que está a fazer, não é preciso
ir à escola para saber o que está a fazer, mas é preciso ir à escola para ter
trabalho", resume António.
E não é só a língua que coloca dificuldades a estes
homens, garante Filipe*, com 43 anos e o 9o ano do liceu. Filipe chumbou no
exame de aptidão para B3 e teve de fazer o curso de B1, apesar de exercer a
profissão como B2. "A língua para mim foi um grande obstáculo. E a
matéria, que é para engenheiros e não para trabalhadores da construção. Para
quem tem pouca escola em Portugal, que é o caso da maioria das pessoas, o curso
é dificílimo", garante
Na sua turma, a maioria ficou pelo caminho.
"Éramos 10, todos portugueses, e só passaram quatro [no exame final], uns
por causa da língua, outros porque são pessoas com uma certa idade e já não
entra nada na cabeça".
António da Costa foi um dos que passou o exame de B1
no ano passado e está ansioso por que o chamem para o curso seguinte. "Se
me chamarem para B2, vou fazê-lo", garante ao CONTACTO. E depois das
dificuldades por que passou, já tem saudades da escola.
"Eu no início dava-me o sono, porque não estou
habituado a estar sentado. E é tudo diferente do que estamos habituados. Uma
vez pediram-nos para calcular o volume de terra retirado de uma vala, dando-nos
as medidas, e eu não sabia fazer isso. E os ângulos: no 'chantier' estamos
habituados a traçar com régua e lápis, e eles lá no IFSB trabalham com um
sistema diferente. Foi difícil, ficava a estudar até à meia-noite porque havia
muitos cálculos, às vezes doía-me a cabeça, mas agora já tenho saudades e quero
continuar", conta ao CONTACTO.
É bom que continue: só tem diploma de B1, e se
"perder o emprego e for para outro, vai ser contratado como B1"
apesar de actualmente trabalhar como B2, avisa o sindicalista da OGB-L. Descer
de escalão significa baixar de salário, dos 13,7450 euros por hora que auferem
os B2 para os 12,4846 que a convenção colectiva prevê para os B1 - menos 222
euros ao fim do mês. E não fazer a formação significa ficar preso no mesmo
escalão, a ganhar o mesmo salário até à reforma - ou até serem "incapazes
de trabalhar por causa de problemas de saúde, quando um bom operário podia ser
convertido num técnico se tivesse formação", lamenta José Pinto.
PTA
* A maioria dos entrevistados nesta reportagem pediu o anonimato.
Dificuldades linguísticas dos trabalhadores do sector da construção
Um problema à espera de solução
Desde 2002 que a lei exige um
diploma emitido pelo Institut de Formation Sectoriel du Bâtiment (IFSB) para
progredir de escalão profissional e aumentar de salário. Antes, bastava a
antiguidade.
Para a maioria dos portugueses do sector, isso
significa fazer formação e exames numa língua que não dominam.
Na OGB-L, há muito que se discute o problema, que não
se limita "aos trabalhadores que estão no activo e afecta muitos no
desemprego", frisa o presidente do sindicato da construção. E o assunto já
chegou ao governo luxemburguês.
"Já falámos ao ministro Biltgen [titular da
pasta do Emprego na última legislatura] e agora falámos ao Nicolas Schmit
[actual ministro do Emprego e da Imigração]", recorda José Pinto.
Em Novembro, o embaixador de Portugal no Luxemburgo
já abordara o problema com Schmit: 32 % dos desempregados são portugueses, o
que representa 10 % da população activa portuguesa. Muitos "são pessoas
que ainda não têm idade para a reforma e que estão em situação precária",
"empregados pouco qualificados" a quem "a crise no sector da
construção afectou particularmente", disse nessa altura Pessanha Viegas ao
CONTACTO.
"O problema é que não dominam o francês escrito
e nem sequer passam nos testes de admissão para poderem receber formação. A
comunidade portuguesa funciona ainda muito em circuito fechado, e o português é
a língua utilizada no trabalho e na família. Uma possibilidade que discuti com
o ministro Nicolas Schmit seria fazer testes orais de admissão. A outra é dar
formação em português, com a colaboração do instituto de formação profissional
equivalente em Portugal", avançou na altura ao CONTACTO.
Uma proposta primeiro avançada pela OGB-L em 2008 mas
a que muitos se opõem, a começar pelo Instituto de Formação para o Sector da
Construção.
"Os patrões são contra [a formação em
português], e o IFSB é financiado integralmente pelo patronato", diz Luc
de Matteis, secretário do sindicato de construção que José Pinto preside.
"Falámos com a ministra do Trabalho portuguesa para ver o que se podia
fazer para ajudar estes trabalhadores, mas a discussão não é tão simples como
isso. Não basta 'importar' formadores portugueses, porque depois os patrões
exigem que os operários falem francês", diz Luc de Matteis
José Pinto acha a exigência irrealista. "Nas
empresas as pessoas dizem: 'Ah, mas eles deviam aprender francês'. Mas é
difícil, para alguém que tem 40 ou mais anos e tem uma profissão pesada
fisicamente, ir agora aprender uma língua de raiz. Estas pessoas nos últimos 20
anos foram úteis nos 'chantiers' [estaleiros de construção], e agora de um
momento para o outro têm de fazer formação por causa dos patrões. Em vez de
enfiarmos as pessoas num buraco, porque não dar-lhes formação em português?",
insiste.
Luc de Matteis hesita.
"É preciso termos cuidado para não tomarmos
decisões que parecem boas mas que depois agravam o problema", recomenda.
"A questão não é obrigar as pessoas a aprender francês por uma questão
nacionalista, por ser uma da línguas do país, mas para estarem protegidas. Quem
só fala português está fragilizado no trabalho, os patrões pagam-lhes menos e
eles não se sabem defender".
Dar formação em francês é a solução que o secretário
do sindicato da construção prefere, mas também aí há vários problemas. É que a
lei luxemburguesa não prevê licenças para aprendizagem do francês: o
"congé linguistique" aprovado em 2008 só contempla o luxemburguês, e
aprender uma língua nova leva tempo, diz José Pinto.
"É preciso encontrar uma solução a curto prazo
para que os trabalhadores que estão cá há 20 ou mais anos possam evoluir entre
[os graus de] B1 e B3", insiste. "Os trabalhadores portugueses que
agora chegam já têm mais habilitações, e daqui a dez anos não haverá este
problema".
O assunto vai ser objecto de discussão de um grupo de
trabalho criado pelos ministros do Emprego dos dois países.
PTA
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