por Natália Faria
No café
Nascer do Sol, na freguesia de Penha Longa, em Marco de Canaveses, o
trabalho começava a apertar a meio da tarde de sexta-feira e acabava
aos domingos, pela meia-noite. "Nesses três dias, trabalhávamos para a
semana toda", recorda Arlindo Soares. Mas isso era no tempo em que as
carrinhas chegavam de Espanha e descarregavam as dezenas, centenas de
homens que regressavam às aldeias depois de mais uma semana de trabalho
na construção civil do lado de lá da fronteira.
Agora, desde
que a crise bateu forte em Espanha, "trabalha-se quatro semanas para
pagar as despesas e, às vezes, não chega". As empresas desataram a
despedir e os que recusaram ficar a trabalhar o mesmo por menos
dinheiro, aguentam-se com o subsídio de desemprego ou procuraram outros
destinos: França, Suíça, Angola, Luxemburgo, Alemanha e também, o
Brasil, por causa do mundial de futebol. Com tantos quilómetros de
permeio, regressar a casa aos fins-de-semana tornou-se impraticável.
Agora, no café Nascer do Sol, como na quase totalidade do Noroeste
português, "é um deserto todos os dias".
"O pessoal daqui não
é de se pôr à espera que a chuva passe: vai para onde há trabalho",
intromete-se Nélson Martinho, ajudando a perceber por que é que o Marco
de Canaveses foi o concelho que mais trabalhadores exportou para
Espanha: cerca de oito mil, no auge do fenómeno, entre 2007 e 2008.
Nélson é dos poucos que continuam. É quarta-feira de manhã e
encontramo-lo no café da terra a bebericar uma cerveja, mas isso é
porque "há uma obra nova em Pamplona que ainda não arrancou porque
falta a licença da câmara". "Vai havendo algum trabalho, mas eles [os
espanhóis] baixaram muito os preços. Chegámos a ter lá trinta homens,
agora são menos de quinze". Nélson conhece muitos homens atirados para
o desemprego sem direito a nada. "Era o prato do dia. Alguns pensavam
que tinham feito descontos e, quando foram meter os papéis para o fundo
de desemprego, perceberam que não. Também havia patrões a declarar
salários de 150 euros por trabalho em part time. Mas o pior era
os que falsificavam exames médicos e folhas de Segurança Social para
enganar os espanhóis e dizer que estava tudo regular".
As
vítimas dos engodos foram as que mais dores de cabeça provocaram ao
padre Pedro Oliveira, responsável pelas paróquias de Penha Longa, Sande
e Paços de Gaiolo. "Muitos destes homens regressaram como os
retornados: sem nada", descreve, no escritório da casa paroquial, em
Penha Longa. Para aqui chegar desde o café, atravessa-se o silêncio
absoluto da aldeia, subindo pela estrada principal, por onde quase não
passam carros. Do cinzento opaco do céu desprende-se uma chuva miudinha
que faz reluzir as cameleiras dos quintais. O vento empurra o fumo das
chaminés, a denunciar a existência de gente dentro. "Há muita pobreza
que se esconde dentro destas casas", aponta o pároco. "Sabemos porque
as crianças começam a chegar à escola com fome".
Jeans,
sapatilhas coloridas, computador ligado à Internet, Pedro Oliveira sabe
fazer-se presente entre os seus quase cinco mil paroquianos. Em 2007,
quando a emigração para Espanha mobilizou perto de 150 mil portugueses,
este padre metia-se nos cafés ao domingo à noite, a recomendar cautela
na estrada. "Ia ter com eles e dizias-lhes: "Vejam lá, mudem de
condutor várias vezes, quero-os cá vivos para a semana"." Nunca teve de
enterrar nenhum emigrante morto na estrada. Nalgumas freguesias e
concelhos vizinhos, sim, houve vários mortos. Os homens abalavam em
carrinhas de nove lugares, a horas em que o país descansava entre
lençóis, para, depois de centenas de quilómetros em curvas e
contracurvas, engatar directamente em jornadas de 10, 12 horas de
trabalho. "Na altura, havia quem ganhasse dez euros por hora. Aos
domingos à noite, as carrinhas faziam fila aqui", recorda a funcionária
da bomba de gasolina de Penha Longa, Zita Maria, de 36 anos. Sabe do
que fala porque o seu marido foi um dos que, agora, tiveram que
abandonar Espanha. "Andou três anos, até que começou a ganhar menos e
depois deixou de ter trabalho". Agora, espera que o chamem para a Suíça
e Zita reza para que possa seguir com ele. "Ia fazer umas horas nas
limpezas", pondera.
Educar os filhos
Ao menos,
acabava-se-lhe o problema de ter de educar dois filhos praticamente
sozinha. "Aqui funciona a figura do pai ausente, as crianças são todas
órfãs de pai", brinca o padre. Mas vai-se perguntar ao director do
agrupamento de escolas do concelho e percebe-se que o assunto é grave.
"A ausência dos pais, ou o desemprego, imediatamente gera actos de
indisciplina e conflito", constata Alberto Tavares. Por causa disso, o
agrupamento inaugurou este ano lectivo um gabinete de mediação com
apoio psicológico. Mais recentemente, reforçou o apoio alimentar a meio
da manhã e a meio da tarde. "Começámos a ver miúdos que chegavam a
comer duas e três vezes ao almoço para compensar o facto de não
jantarem".
Em frente a um copo de vinho branco, num café da
aldeia vizinha de Magrelos, Manuel Brás, quatro filhos, dos quais um
ainda na escola, está no desemprego, mas garante que comida em casa foi
coisa que ainda não faltou. "Estou no paro [desemprego] até
ver", apresenta-se, num português contaminado pelo castelhano. Com 58
anos, trabalhou na Alemanha, Rússia, Iraque, Espanha. "Estive oito anos
em San Sebastian, mas vinha a casa todos os oito dias". Nos tempos
áureos, trabalhava por oito/nove euros por hora, a um ritmo de dez ou
doze horas por dia. Hoje, paga-se sete euros aos melhores. Muitos não
passam dos cinco".
Um dos filhos que com ele trabalhou em
Espanha já seguiu para França, em Bordéus. O outro, que entretanto
trouxe namorada espanhola para a terra, "está à espera". Como o pai.
"Pois se não há trabalho em Espanha, que hei-de eu fazer?! Ainda me
faltam muitos anos para a reforma". E até conseguir? "Vai-se ocupando o
tempo". E depois, como se falasse para dentro: "Uma pessoa chateia-se,
quem está habituado a trabalhar, chateia-se de não fazer nada, hombre...".
Chateia-se
ele e chateia-se Américo Aguiar, de 45 anos, ao balcão de outro café, o
Ventosa, outra vez em Penha Longa. "O patrão mandou-nos embora e agora
andamos aqui, a olhar uns para os outros", lamenta-se. Sem direito a
subsídio de desemprego, encostou-se aos pais para aguentar a falta de
dinheiro. Já tratou de "meter os papéis para a Alemanha. França e
Suíça". "O primeiro que sair, eu vou". Se puder, evita a França, por
onde já andou um mês, em Bordéus. "Ganhava oito euros por hora, mas
éramos doze a dormir numa casa velha, em camas separadas por cortinas.
Ao almoço, comíamos sandes". O pior, porém, eram as pessoas. "Não sei
se era racismo, mas parece que nem olhavam para nós". Se pudesse,
voltava para Espanha. "A língua é fácil, a casa onde dormíamos era boa
e a comida também". E, além disso, diz: "Era quase como se
continuássemos em Portugal". Na pasmaceira do café Nascer do Sol,
Arlindo Soares também sonha com o regresso desses dias do eldorado
espanhol. "Ao fim-de-semana, isto ganhava vida. Agora se as pessoas se
põem todas a correr o mundo, e alguns até a levar as mulheres com eles,
aqui o comércio morre. Morremos todos".
Público, aqui.