Por Texto e fotografia Alexandre Soares, New Bedford
Há exactamente 15 anos uma nova lei antiterrorismo transformou a vida da comunidade portuguesa nos Estados Unidos. Esta é a história impossível dos imigrantes que lutaram contra a deportação. E venceram.
José regressava das férias com a mulher nas ilhas Bermudas, quando alguém nos serviços de fronteira à entrada dos Estados Unidos o mandou parar e lhe disse que estava referenciado na base de dados do FBI. Paulo já abandonava o hospital onde tinha tratado uma perna ferida, quando um segurança lhe colocou a mão no ombro e informou-o de que a polícia vinha a caminho para o deter. Assim que Delfim tentou ligar o disjuntor na parte de fora da sua casa, ouviu uma voz atrás de si, virou-se e distinguiu na penumbra dois agentes dos serviços de imigração americanos com metralhadoras.
Estes três homens foram surpreendidos. Todos eles eram imigrantes portugueses nos Estados Unidos, muitos viviam naquele país desde crianças. É verdade que nunca se tinham tornado americanos, mas isso não era, aos seus olhos, razão para que de repente estivessem transformados em ameaças aos olhos da sociedade norte-americana, à qual pertenciam, há muito. E, mais ainda, a partir daquele instante, tornavam-se persona non grata, e entravam num processo de deportação. A partir dali as suas vidas tinham sentido único: três peões a caminho de Portugal.
Este caminho já foi percorrido por «mais de mil pessoas» nos últimos 15 anos, explica Helena Marques, directora do Centro de Apoio ao Imigrante (CAI). Helena conhece apenas «cinco casos, no máximo dez», de pessoas que conseguiram travar o processo. Helena é uma madeirense de cabelo comprido e louro que adora correr e tem o sorriso imaculado que associamos à maioria dos norte-americanos. Mas Helena vive no país apenas desde os 18 anos. Começou a trabalhar neste centro de apoio aos imigrantes aos 23. Em 1996, foi promovida a directora e desde essa altura que passa os seus dias neste gabinete simples, em New Bedford, Massachusetts.
Nesse mesmo ano, o presidente Bill Clinton assinou um novo pacote legislativo na sequência do atentado de Oklahoma, que matou 168 pessoas. Na altura, as duas leis - Acto Antiterrorismo e Efectivo da Pena de Morte e Acto de Reforma da Imigração Ilegal e Responsabilidade do Imigrante - não foram uma preocupação para Helena. Terroristas, imigrantes ilegais... não era este o perfil da comunidade portuguesa.
Meses depois, começou a ouvir «este vai ser deportado, aquele vai ser deportado». «Não fazia sentido.» Um dia, recebeu um telefonema do procurador do condado de Bristol, Paul Walsh Jr. «Tinha recebido uns fundos para ajudar pessoas em processo de deportação e queria subcontratar o centro.» O procurador recebia quinhentos mil dólares do Estado e estava disposto a pagar uma boa parte ao CAI. Helena aceitou a proposta.
Foi a um centro de detenção em Dartmouth, falou com os detidos, todos lhe responderam em inglês, alguns nem falavam português. Contaram que viviam na América desde crianças e que tinham Cartão Verde, a autorização de residência permanente. Confusa, Helena regressou ao seu gabinete e agarrou nos textos das leis aprovadas no ano anterior. Leu o primeiro parágrafo, referia-se apenas a imigrantes ilegais. Mas no segundo parágrafo dirigia-se a não cidadãos. O pacote legislativo - concebido para atingir imigrantes ilegais e terroristas - afectava a comunidade imigrante legal. Afinal, aquela realidade estava mais próxima do que ela imaginara, porque aquela lei, estranha, ia afectar muitos portugueses.
A maioria dos imigrantes portugueses chegou na década de sessenta com autorização de residência para toda a família. Passados cinco anos, os pais naturalizaram-se para fazer a carta de chamada a outros familiares, mas não o fizeram com os filhos. Helena diz que «não perceberam a importância de serem cidadãos americanos». Eram todos imigrantes, sim, mas absolutamente legais, nada tinham a temer.
Com a mudança legislativa, a Immigration and Custom Enforcement (ICE), os serviços de imigração americanos, podiam cruzar dados do FBI e dos tribunais. Furto, conduzir sob o efeito de álcool ou sem carta, e conduta desordeira tornavam-se delitos que podiam causar deportação. Além disso, a lei era retroactiva: era indiferente se o crime tinha sido cometido naquele dia ou vinte anos antes. Qualquer indivíduo com uma pena superior a um ano seria automaticamente deportado. Na grande maioria dos crimes, os juízes de imigração perdiam poder de decisão e a deportação tornava-se automática. Parar um processo destes tornava-se uma missão impossível.
No epicentro deste turbilhão legal, as circunstâncias transformaram Helena numa heroína inusitada. «As mães começaram a ligar-me, a chorar, a menina ajude o meu filho, ele nunca foi a Portugal, não tem família lá, não fala português.» O escritório de Helena era agora um quartel-general onde se coordenavam os esforços de um exército de imigrantes em guerra com o impossível, mas ela nem imaginava como isso mudaria a sua vida. Helena percebeu que, apesar de a lei ser federal, atingia sobretudo o estado de Massachusetts. Falou com o procurador e descobriu que, além do protocolo com o centro, ele tinha criado uma equipa de investigação que pesquisava os registos criminais de imigrantes e os denunciava aos serviços de imigração. Indirectamente Helena estava a colaborar com um projecto que acelerava as deportações.
Sentindo-se traída, Helena viajou até Washington e reuniu-se com vários senadores e congressistas, como os democratas Barney Frank, Edward Kennedy e o senador John Kerry - que haveria de ser candidato presidencial e era casado com a moçambicana Tereza Heinz. «Não fiquei nada impressionada com Kerry. Dos três, era o único que desconhecia totalmente a situação.» Regressando a New Bedford, Helena declarou ao jornal Standard Times - o diário local - que o senador de Massachusetts estava «desligado da comunidade». A equipa de Kerry tentou, em vão, impedir a publicação da história; depois, o senador ligou para Helena e mostrou-se preocupado. Kerry já pensava na corrida à Casa Branca, que se concretizaria em 2004. Os outros dois políticos haveriam de dar-lhe mais atenção - sobretudo o congressista Barney Frank, que fez dos direitos dos portugueses uma bandeira, ajudou a mudar leis e a apoiar os que partiam.
Entretanto, começavam a chegar os primeiros deportados aos Açores. A população ainda lhes chama repatriados. Embora a pátria que eles achavam que era a deles fosse a América. Chegavam a um lado do Atlântico e desapareciam no outro. As famílias, nos Estados Unidos, preferiam esconder a cara, por causa da desonra, por causa da vergonha. Mas as suas histórias foram-se acumulando e acabaram por formar uma nódoa que manchou a existência simples e metódica dos portugueses por aquelas bandas. Foi isso que, durante algum tempo, esta lei conseguiu fazer à comunidade portuguesa: apagar-lhe o rosto.
Helena percebeu o que estava a acontecer e criou a WISH (Women Immigrants Support Hub). Em poucas semanas, reuniu um grupo de 120 mães, avós, irmãs, filhas e mulheres que começou a encontrar-se em igrejas para chorar e rezar. Helena diz que é «portuguesa na alma e no coração», mas a maneira como olha e vive a vida «é toda americana» - chorar e rezar não interessava ao seu pragmatismo. Aquelas mulheres estavam ali para contar as suas histórias à comunicação social. Durante uma semana, o Providence Journal dedicou todas as suas primeiras páginas a estas famílias. O impacte foi brutal. Algumas semanas mais tarde, o Wall Street Journal fez uma reportagem sobre o caso.
Com esta atenção e pressão mediáticas, os políticos começaram a aceitar reunir-se com estas mulheres. Na Igreja de Santo Cristo, em Fall River, Helena organizou uma série de encontros onde cada mulher dispunha de três minutos para contar a sua história. Ao mesmo tempo, pedia ao procurador que «ficasse com o dinheiro, mas parasse com o programa». Paul Walsh Jr. respondia sempre que o programa apenas atingia «criminosos, traficantes de droga e imigrantes ilegais».
Vestidas de preto, as mulheres começaram a manifestar-se todas as terças-feiras em frente ao escritório do procurador. Insistiram durante dois anos, sem qualquer resultado, até que em 2001, numa terça-feira de manhã, Helena recebeu um telefonema: «As tuas senhoras continuam com os cartazes, mas o programa já foi cancelado.» Paul Walsh Jr. cedera finalmente.
Entretanto, o congressista Barney Frank tinha preparado uma emenda à lei que seria votada no Congresso. Especulava-se que reuniria muito apoio, nunca estivera tão próximo o fim deste pesadelo. Mas o impossível aconteceu. «Com o 11 de Setembro, a votação foi cancelada», explica Helena. E, pior. A opinião pública passou a estar do lado contrário: com raiva da emigração, tendo em conta que todos os terroristas dos aviões que derrubaram o WTC eram estrangeiros. «Mudou a agenda política. Todas as questões relacionadas com imigração foram agravadas. E as nossas senhoras deixaram de aparecer.»
Após a curta paragem de 2001, o programa de aceleração das deportações recomeçou. Em 2006, Helena Marques viu nas novas eleições para o cargo de procurador do condado de Bristol - cargo que nos EUA é eleito pelo povo - uma oportunidade para afastar Paul Walsh, aquele que considerava ser o responsável por toda a desgraça que atingira a comunidade portuguesa. Mobilizou as bases. E, semanas depois, imigrantes e jornalistas enchiam a igreja de Monte Carmo, em New Bedford, para assistir ao debate entre os dois candidatos - Paul Walsh Jr. e o adversário, Sam Sutter - organizado pelo Centro de Apoio aos Imigrantes. Helena, a moderadora, começou suave. À terceira pergunta atacou: «Porque criou um programa para acelerar a aplicação da lei de repatriamento?» O procurador mentiu, outra vez, usando os seus argumentos habituais. «Foi para tirar os traficantes de droga das ruas, é apenas direccionada aos imigrantes ilegais», respondeu. O adversário garantiu que acabaria com o programa se fosse eleito. Normalmente, a comunidade portuguesa de Massachusetts não costuma ter peso eleitoral - não vota, divide-se, abstrai-se - mas no dia das eleições, após 18 anos no cargo, Paul Walsh Jr. foi derrotado nas urnas.
Em 2007 já ninguém investigava o cadastro dos imigrantes, o número de deportações diminuiu, mas elas continuavam a acontecer. Helena nunca olhou para estes «repatriados» da mesma maneira que a lei os via. Diz que eram, isso sim, vítimas. «Viram o alcoolismo em casa, por vezes violência doméstica. Iniciaram o liceu, mas não o terminaram. Trabalham na construção, nas fábricas ou na pesca. O principal motivo de deportação é a droga, o segundo violência doméstica, o terceiro agressão. A maioria é casada, ou divorciada, quase todos têm filhos.» Segundo os últimos dados disponíveis, 95 por cento de todos os deportados são homens, a grande maioria são açorianos que chegaram aos EUA antes dos 14 anos. São estes os rostos mais comuns, mas a deportação é um processo cego que já chegou a deportar uma mulher que vivia no país desde os 11 dias e sofria de doença bipolar ou um doente paraplégico.
Os deportados chegam a Portugal com a ilusão de que as famílias os irão visitar. Mas isso quase nunca acontece. Os laços cortam-se. E eles, claro, como conta Helena, «ficam deprimidos e muitas vezes voltam a beber». Por isso, embora as deportações tenham diminuído, o trabalho de Helena não acabou. Nas próximas semanas, quer isolar uma sala do centro e montar um computador com Skype. Nos centros de apoio nos Açores, será feita a mesma coisa, para proporcionar um reencontro virtual a estas famílias - muitas delas há vários anos não se vêem.
Helena conhece a situação dos dois lados do Atlântico e fala de uma série de exemplos: de gente que transformou a sua integração numa história de sucesso, negando o seu passado e recusando confundir-se com os seres facilmente identificáveis que usam chapéus de basebol com nomes de equipas que ninguém conhece nos Açores. É uma população heterogénea, que Helena reencontra sempre que está em São Miguel, como em Dezembro do ano passado, quando visitou um jovem que em poucos meses arranjou trabalho, alugou apartamento e já pensa imigrar para a Inglaterra; mas também o idoso atirado para uma cama pelo vício do álcool ou o rapaz «muito bonito que tinha frequentado a faculdade» e lhe prometera não beber, mas confessou a chorar que «tinha ficado muito deprimido e não tinha resistido». O facto é este: dez por cento destes deportados não sobrevivem. Meses depois da sua chegada, morrem devido a overdose ou suicídio.
Helena lembra-se de um fim-de-semana em que recebeu uma chamada telefónica do Centro. Em Ponta Delgada tinham encontrado o corpo de um jovem abandonado. Morrera há dias, mas ninguém o conhecia - não tinha família, nem amigos, nem tão-pouco conhecidos nos Açores. As autoridades tinham recolhido os seus bens e agora Helena tinha na sua secretária um envelope amarelo com os coisas do jovem e o dever de contar à família que ele estava morto e enterrado numa ilha no meio do Atlântico.
Os irmãos chegaram ao seu gabinete. Helena contou a notícia e entregou o envelope. Eles, a chorar, pediram à directora que o abrisse. Helena abriu-o e virou-o para baixo, esvaziando o seu interior. Na superfície fria da mesa, tombaram três euros, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, um folheto com os dez passos dos alcoólicos anónimos e uma fotografia da família.
A perseguição feita a estes imigrantes não é resultado da maldade humana. A economia americana tem recursos a menos para gente a mais, as histórias dos deportados que Helena ajuda são resultado de um imenso sistema burocrático onde aqueles homens são pequenos grãos de areia. Frederick Watt, advogado especialista em imigração, e que tem ajudado muitos portugueses, diz que trabalhar nesta área «é complicado e confuso, existem diferenças enormes entre os estados e mesmo dentro deles». Uma das promessas eleitorais de Barack Obama foi a reforma da imigração, mas para Helena Marques isso não é prioritário. «O que pretendemos é uma emenda das leis de 1996 que acabe com a retroactividade e devolva aos juízes de imigração o seu poder de decisão.»
Frederick Watt concorda: «Antes de 1996 era muito mais fácil defender estes casos, a lei precisa de um sistema de peso e contrapeso.» Parece simples, mas o advogado não acredita numa mudança. «Há duas questões: a imigração legal e a ilegal. Os meus clientes são imigrantes legais. Quanto a eles, há consenso, mas existem tantos grupos de pressão e interesses que uma mudança simples vai sendo acrescentada e transforma-se numa grande mudança legislativa. Duas páginas sobre imigrantes legais tornam-se em duzentas páginas sobre ilegais até chegar ao Congresso. Perde-se a intenção original e torna-se impossível a aprovação.»
Em 2009, Helena foi convidada para uma conferência na embaixada portuguesa em Washington com outros portugueses de sucesso. Pensou que tinha encontrado uma nova oportunidade para recolher apoios, mas tornou-se óbvio o desconforto de todos quando falava do assunto. «Ficaram fartos de ouvir falar nisto», diz. Esta guerra deixou de ser uma prioridade para os líderes da comunidade. Mas há momentos em que se arrependem. «Há poucos anos, recebi o telefonema de alguém muito influente na comunidade, que tinha desprezado a questão. E a sua irmã tinha sido deportada e ele queria agradecer o trabalho do centro.»
Em 2010, o CAI esteve envolvido em sessenta processos de deportação de portugueses. As batalhas ganhas, como a de Delfim, José e Paulo (textos nestas páginas), são raríssimas. A verdade é que nada aconteceu nos últimos 15 anos. A lei, monolítica, continua inabalável e já poucos acreditam numa mudança. Neste momento, apenas se encontram alguns focos de resistência espalhados pelo país, todos coordenados a partir de um ponto comum: o gabinete de Helena Marques.
O casamento de Helena não sobreviveu aos últimos anos, a sua única filha vive do outro lado do país, em Los Angeles, e os vários telefonemas diários pouco encurtam a distância. Mas a questão dos deportados não a largou. «Tenho uma responsabilidade enorme, não posso dizer que perdi a fé», diz, mas, assim que termina a frase, desmancha o sorriso que mantém desde o início. «Choro todos os dias. Conheço estas pessoas na prisão, as famílias, depois sei como acabam. Vivo este pesadelo todos os dias. Tem sido a minha vida. Todos os dias chego cá e tenho famílias à espera para pedir ajuda.»
Atrás desta mulher, loira e com ar de executiva, mas que chora e borra a maquilhagem, está uma parede com vários prémios que a comunidade portuguesa lhe atribuiu. Ali no meio, «Mulher do Ano 2001», junto a outros diplomas. Encostado à secretária está um caixote esquecido com muitas outras distinções. «Estão sempre a rezar por mim, ligam-me a dizer que têm velas acesas, sou abençoada todos os dias. Neste gabinete, vivo rodeada de anjos. Seria uma hipócrita se estivesse à frente deste centro e não falasse, tinha de ter os olhos fechados. Falo sempre, sempre, sempre disto.» E vai continuar. É apenas um soldado em descanso à espera de nova batalha. Tão certo como o seu telefone voltar a tocar, ela retocará o bâton e, com um jeito no cabelo, voltará a ser o general de um exército de imigrantes em guerra com o impossível.
Um fantasma com 30 anos
No Verão de 2001, José e Jodie Medeiros embarcaram num cruzeiro para o paraíso das Bermudas. No regresso, no serviço de fronteira dos EUA, José foi chamado à parte. «Tinham encontrado uma ocorrência na base de dados.» Quando chegou perto da mulher, proferiu a sentença: «Vou ser deportado.»
José, 47 anos, nasceu na ilha do Faial e vive nos EUA, em Stoughton, Massachusetts, desde os 4 anos. Quando tinha 17 anos, quis beber umas cervejas. Só que a idade legal para beber no país é 21 anos e ele e o amigo John não tinham quem as fosse comprar. José entregou dez dólares a um desconhecido. Quando este saiu do mercado, entregou-lhe as cervejas, mas não o troco. «Tinha 17 anos, não trabalhava, dez dólares era muito dinheiro.»
Entraram numa luta, José partiu uma cerveja na cabeça do homem. Pegou no seu dinheiro e foi-se embora. Foi julgado por ofensa corporal com arma perigosa e roubo, condenado a seis anos de pena suspensa, cumpriu apenas um. Foi libertado com 19 anos, conheceu Jodie, uma americana, casaram-se, tiveram duas filhas, hoje com 26 e 23 anos. E José nunca regressou ao Faial.
Quando disse à mulher que ia ser deportado, Jodie ganhou uns olhos de aço e uma vontade de ferro: «Vamos lutar contra isso.» O primeiro advogado cobrou dez mil dólares. O casal não os tinha, vendeu a carrinha Toyota Tacoma, acabada de comprar. Jodie tornou-se especialista em leis de imigração e começou uma maratona de recursos, apelos, cartas, entrevistas, pedidos de perdão - um trabalho burocrático extenuante, mas compensatório. Jodie ganhou tempo, muito tempo. Passaram-se cinco anos.
No final de 2006, José começou a sentir que não conseguiriam impedir a deportação por muito mais tempo. Virava-se para a mulher e dizia: «Eles vêm buscar-me.» No dia 24 de Janeiro, saiu do trabalho às 17h00, entrou na carrinha Saab verde e conduziu até casa. Anoitecia, mas, na sua entrada, José distinguiu dois homens junto a um SUV preto. No interior da casa, Jodie já chegara há algum tempo e tinha-se descalçado. Ouviu os cães ladrar e sentiu «que algo estava errado». Foi até à janela e viu dois homens algemarem o seu marido.
Imagine-se a cena: Jodie a correr descalça, naquele fim de tarde gelado. Os dois agentes a estenderem-lhe os braços, mostrarem os crachás do ICE e a impedirem com o corpo que se aproxime do marido. Ela só lhe queria dizer que ia ligar para o advogado, o cônsul, o embaixador, o presidente deste e daquele país, os que fossem precisos, que ia escrever apelos, interpor recursos, contactar jornais, chorar nas televisões. Queria dizer-lhe que todo o esforço tinha valido a pena, que os milhares de dólares gastos não tinham sido desperdiçados. Queria dizer ao marido que o seu país não lhe ia fazer aquilo. Não disse nada. Só chorou. E o marido desapareceu no interior da carrinha negra.
Em liberdade, Jodie multiplicava os esforços - trabalhava com três advogados ao mesmo tempo. Como a sentença do marido era superior a um ano, José apenas tinha duas hipóteses: obter um perdão do governador de Massachusetts ou conseguir uma revisão da sentença com quase trinta anos. Pediu uma audiência ao governador; quando esta foi negada, agarrou no carro, conduziu até Boston. Encontrou a vítima da agressão com a cerveja e conseguiu que ele redigisse uma carta pedindo o perdão para José. No dia 27 de Maio, pela primeira vez numa década, o painel teve uma decisão unânime. Os sete membros concordaram em conceder o perdão.
«Depois a questão tornou-se muito política. Deval Patrick [o governador] é muito próximo de Obama, que estava em campanha. Se alguém próximo de Obama concedesse um perdão numa questão de imigração, podia ser complicado para ele.» O governador acabou por contrariar a decisão inédita dos seus conselheiros e recusou o perdão.
José estava preso há seis meses. Sofre da Doença de Machado, incurável e degenerativa, que provoca perda do equilíbrio e coordenação muscular, e na cadeia, a doença desenvolveu-se rapidamente. «Caía por todo o lado.». A sua pálpebra direita começou a inchar e os músculos do corpo doente minguavam todos os dias. Foi por duas vezes acordado a meio da noite e levado para Boston, onde apanharia o avião. «Quando estamos em trânsito não podemos falar com ninguém e não te dizem o que está a acontecer. Pensei que estava a enlouquecer.» Das duas vezes, Jodie conseguiu um adiamento. Mas em Junho de 2008 José estava de novo em Boston e faltavam onze horas para o voo que o levaria para os Açores, quarenta anos depois de ter partido. E o impossível aconteceu. Após múltiplos recursos, uma juíza do Supremo Tribunal de Massachusetts reviu a sentença dada há trinta anos para seis meses. Sete anos e 35 mil dólares depois do início do pesadelo, José já não seria deportado.
Em Novembro de 2009, o seu processo foi encerrado. José já se pode naturalizar - coisa que lhe tinha sido negada por causa da pena. Mas já não quer ser cidadão americano. «Odeio este país», diz, apoiado na bengala que já não o larga. Sente que a América lhe comeu a vida e o cuspiu como uma espinha.
Uma carta de Obama
Paulo Monte fala como o temporal em que a sua vida sempre esteve mergulhada. Diz que foi espancado por cinco polícias, mas que o acusaram de agressão à autoridade; pediu o carro emprestado a um amigo, mas o veículo foi dado como roubado; foi apanhado com dois Vicodin, um poderoso analgésico, sem prescrição médica. Assumiu sempre a culpa, para obter pena suspensa e escapar da prisão. «Não queria lutar contra ninguém, só queria resolver a situação, e rápido, para seguir com a minha vida.»
Aos 42 anos, admite que foi um rebelde sem freio. Já casado, envolveu-se numa discussão no café Angelo"s, em Fall River, estado do Massachusetts, foi acusado de dois crimes de agressão com arma perigosa e intimidação de testemunha. No processo, é referido que a arma era uma bola de bilhar, mas o café nunca teve uma mesa deste jogo. Paulo conhecia a lei - sabia que a acusação valia mais de um ano de pena e que a seguir seria automaticamente deportado. Faltou ao julgamento. Durante quatro anos ignorou todas as cartas do tribunal. Diz que não se escondeu, mas se o queriam julgar teriam de o ir buscar. Em 2007 magoou-se numa perna e foi ao hospital. À saída, um segurança avisou-o de que havia um mandado de detenção em seu nome e que a polícia estava a caminho.
Durante o julgamento, a acusação foi desagravada para agressão, o tribunal ofereceu um acordo de pena de 11 meses e Paulo declarou-se culpado. Acreditou sempre que não seria deportado até ao dia em que recebeu a visita de uma funcionária dos serviços de imigração. A mulher informou-o de que era acusado de crimes de «moral turpitude» - (extrema maldade), uma figura jurídica americana que já se aplica só as leis de imigração - é considerada obsoleta. Nestes crimes é indiferente se a pena é um dia ou de um ano, todos são deportados.
Paulo saiu em liberdade condicional directamente para os serviços de imigração. Enquanto esperava pela sua audiência, a filha foi visitá-lo à prisão e disse: «Paizinho, não quero que vás para Portugal.» Esta frase envolveu Paulo como uma armadura que o havia de proteger do pior dos pensamentos. Quando chegou o dia de se apresentar ao juiz de imigração, os agentes algemaram-no, amarraram uma corrente que descia das suas mãos até às algemas que tinha nos pés e atiraram-no para a parte de trás de uma carrinha blindada sem janelas. Estacionaram na garagem do edifício JFK, em Boston, um cemitério de vidro e betão para o sonho americano de milhares de imigrantes. O caminho até à sala de audiências era longo e, acorrentando daquela forma, Paulo só conseguia dar passos muito pequenos. Os guardas empurravam-no e gritavam-lhe «hurry up», «mexe-te».
Chegou à minúscula sala de audiências onde seria ouvido e, pela primeira vez em semanas, viu a família. «Todo acorrentado, com o uniforme cor de laranja como se fosse um assassino, em frente à minha família, à minha filha», recorda a chorar. O tribunal é um lugar estranho. O juiz falava dos crimes de Paulo como se falasse de um criminoso perigoso. Esse Paulo das palavras do juiz, não fazia sentido na cabeça do Paulo, trabalhador e pai, na sala de audiência. O juiz decidiu avançar com a deportação. «O meu coração parou. Preferia ter passado anos na prisão.» Pousou o olhar como um zoom no rosto da filha e acreditou que nunca mais a iria ver. A irmã gémea enxugou as lágrimas, levantou-se e começou a falar com Paulo. «Não te preocupes, vamos recorrer. Vamos arranjar o dinheiro e vamos recorrer.» Quando terminou a frase, Paulo já tinha desaparecido pela porta por onde entrara, de volta à prisão.
«A maneira como nos tratam... Dizem que o caso é civil, mas prendem-nos com os outros prisioneiros, homicidas, violadores. Vi rapazes serem espancados e cortados com uma gilete, um miúdo de El Salvador perder um olho por causa de uma fatia de bolo. Os guardas a gozarem com a nossa situação: you are going to Portugal.» Laura Rotolo, advogada da American Civil Liberties Union of Massachusetts (ACLU), confirma. «Há muitas violações dos direitos humanos nas prisões. O governo usa a detenção para levar as pessoas a abdicar dos seus direitos, muitas não conseguem aguentar condições tão cruéis e dizem: não vou lutar, vou assinar.» Paulo passou 35 dias na cela de isolamento por ter respondido mal a um guarda. Começou a sentir uma dormência no corpo, o pingo no nariz, os joelhos inchados e a febre a espalhar-se pelo corpo - estava com gripe. Pediu um médico, esperou quatro dias. «Disseram-me que bebesse água. Queriam que assinasse os papéis para ir embora, punham-mos à frente e diziam: assina, podes acabar com isto agora!» Ele aguentava, tomando antidepressivos. Noite após noite, rezava. «Deus, pára com isto. Por favor!» Pensou desistir, mas nunca assinaria os papéis. Uma única opção surgiu-lhe como a saída daquele inferno: «Quis matar-me.» Mas lembrou-se da frase que a filha repetira na audiência. Era por eles - pela sua filha, pela família - que precisava continuar.
Fora da cela, atravessando as paredes de betão, uma família contava os tostões para pagar os advogados e uma criança chorava na única língua que conhecia. «Comecei a falar com pessoas, a fazer denúncias, mandei cartas aos governadores, ao Obama, ao presidente de Portugal, ao Sócrates.» De Portugal, ninguém lhe respondeu, mas Paulo foi ouvido pelo Office of Civil Rights and Liberties, do departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, e algumas das suas queixas estão a ser investigadas.
A família contactou o advogado Roberto Gonzalez. Especialista em imigração, ele sabia que só havia uma saída: limpar o cadastro do português. Rever ou anular as suas sentenças. Em Janeiro de 2009, 14 meses e sete idas ao tribunal depois, todas as sentenças tinham sido reduzidas ou anuladas. Com a audiência no tribunal de imigração já marcada, Paulo foi acordado durante a noite e levado para Boston. Estava um frio de rachar pedra, tiraram-lhe os sapatos e fizeram uma última ameaça: «Assina estes papéis.» Paulo resistiu.
No dia da audiência, o juiz decidiu que Paulo não seria deportado, mas teria de aguardar uns dias até sair em liberdade. Na prisão, foi informado que se tinha descoberto outra condenação e que podia ainda ser deportado. Estava preso há 19 meses, a família já tinha gasto 12 mil dólares na sua defesa. Roberto Gonzalez apresentou um Res Judicata, recurso que impede uma pessoa de ser julgada duas vezes pelo mesmo crime. O juiz concordou. Encerrou o caso, pela segunda vez, e isentou o recurso. Paulo estava livre. Tudo era, de súbito, calmo e estranho. «Não sei se me vão tornar a agarrar, tenho sempre essa ideia, é um pesadelo que tenho.»
Já em liberdade, Paulo recebeu a resposta a uma carta enviada na prisão. «O nosso sistema de imigração está partido e uma grande parte da nossa economia depende de milhões de trabalhadores que vivem nas sombras. (...) Durante demasiado tempo, os políticos em Washington exploraram este assunto para nos dividir em vez de procurar soluções práticas que nos unissem. Temos de pôr a política de lado e conseguir uma solução abrangente que segure as nossas fronteiras, reforce as nossas leis e reafirme a nossa rica tradição de receber bem os imigrantes.» No final do documento, a assinatura: «Sincerely, Barack Obama».
Uma segunda oportunidade
Delfim começou a trabalhar na pesca aos 16 anos, quando já tinha o vício do álcool, mas manteve-se sempre sóbrio nas viagens de barco que chegam a demorar duas semanas. O pescador, de 47 anos, que prefere não dar o nome verdadeiro, usa dois terços ao pescoço e casou-se pela igreja aos vinte anos. É pai de um rapaz de 16 anos e outro de 26. Quando se divorciou, tentou beber os seus demónios, mas «a bebida não ajudava, ainda puxava mais pela cabeça».
No Verão de 2007, depois de almoçar no restaurante Antonio"s, em New Beford, montou a sua Harley Davidson Fat Boy Custom e foi para casa. Foi parado por um carro da polícia poucos metros depois: o pisca da esquerda não funcionava. O português não se lembra do resultado do teste do balão, mas sabe que «muito acima do permitido». Esse episódio havia de marcar-lhe o futuro. Dias antes do julgamento, teve um acidente de moto e ficou dois meses e meio num hospital de Providence. Faltou ao julgamento, mas a irmã, Gisela, avisara o advogado. Estava descansado.
Com problemas graves na perna, na época seguinte, o patrão apenas o chamou uma vez para pescar. E Delfim foi-se afundando no álcool. Assim estava, em 2009, em quase permanente torpor alcoólico. Um dia, chegou bêbedo a casa. Ligou a televisão, minutos depois a electricidade foi abaixo, e ele desceu à cave para ver o disjuntor. Estava em frente ao quadro eléctrico, quando surgiram dois homens da polícia estatal. «Há um ano que estávamos à tua procura», disparou um deles. Alegadamente, o advogado, a quem Delfim pagara oitocentos dólares, não avisara o tribunal do acidente. Helena Marques diz que existem «muitos advogados desonestos, muitos imigrantes são iludidos, chegam a gastar vinte mil dólares, fazem hipoteca sobre as casas, e são deportados à mesma». Os dois agentes seguravam um mandado de detenção.
Delfim foi condenado a nove meses de prisão por conduzir embriagado. No final da pena foi detido pela Imigração. Informaram-no de que seria deportado com base em três crimes, todos relacionados com álcool e droga, cocaína, que começara a consumir com 23 anos.
Quando a Imigração ICE deteve o irmão, Gisela já tinha telefonado a Helena Marques, que lhe indicara o nome de um advogado. Mãe solteira, não podia pagar o serviço, mas o advogado candidatou o caso a um subsídio de uma organização não governamental anónima. Duas semanas depois, o pedido foi aceite e o prestigiado Frederick Watt tornou-se o seu representante legal. «O crime de posse de droga torna-o deportável, mas isso pode ser contestado», explicou Frederick. O argumento usado em tribunal foi que «Delfim merecia uma segunda oportunidade». Um assistente do advogado pediu-lhe que cortasse o cabelo - que deixara crescer depois de saber que as lâminas não eram desinfectadas -, tirasse o brinco da orelha e tapasse as tatuagens dos braços quando fosse presente ao juiz. E disse a Gisela para chorar mais durante o depoimento. Delfim revoltou-se e recusou todas as opções.
Enquanto esteve preso, tentaram mudá-lo para Texas, a três mil quilómetros de New Bedford, mas um pedido do advogado impediu a deslocação. Era como se alguém de Lisboa tivesse de ir a Cracóvia, na Polónia, ver o familiar detido. Helena Marques diz que a situação tem sido recorrente no último ano e que, neste momento, perto de trinta por cento dos detidos estão fora do seu estado.
Em Julho de 2009, o juiz de imigração deu um mês para a família arranjar um plano de desintoxicação. Gisela pediu ajuda a um especialista que trabalha na mesma clínica que ela. Na manhã do julgamento, 11 de Agosto, Gisela conduziu a família para Boston, filhos, irmãos, mãe e ex-mulher do irmão. «Fomos durante toda a viagem a rezar.» No corredor do Edifício JFK, Gisela tinha na mão o envelope com o plano de desintoxicação pronto para o irmão, uma irmã segurava a imagem de nossa Senhora de Fátima, outra guardava uma estampa do Senhor Santo Cristo. Mas aquele era um julgamento com muito mau timing: dias antes um imigrante estava para ser deportado, foi libertado por um juiz e matou uma freira. Era a notícia do dia nas televisões. O advogado apontou para o envelope, e disse: «Acho que não vai ser suficiente para convencer o juiz.»
Mas foi. O juiz disse: «Estás livre. Vamos dar-te uma oportunidade!» Delfim não festejou, olhou para a mãe, em suspenso. O juiz falou em inglês, a senhora de 80 anos não percebera. O neto mais velho tocou no braço da avó e disse em português: «Ele vai sair, vovó, vai sair!» E então a vovó chorou, Delfim chorou e na sala todos o fizeram. Já no corredor, a irmã que segurava a imagem de Nossa Senhora de Fátima entregou a imagem a um imigrante brasileiro que esperava a sua audiência. No dia seguinte, antes de ir buscar o irmão à prisão, Gisela ligou a Helena Marques. «Dra. Helena, estou a caminho de Burlington, vou buscar o meu irmão.» «Isso é um milagre», respondeu ela.
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