Alexandre e Catarina eram arquitectos em Nova Iorque. Elisabete também. Ayres Gonçalves foi alfaiate em Londres, depois passou anos entre Nova Iorque e Hong Kong. Inês trabalhou para Jimmy Choo e agora lançou os seus próprios sapatos. Dulce trabalhava no sector bancário em São Paulo, no Brasil. Primeiro denominador comum: são todos portugueses, foram todos emigrantes de sucesso. Segundo denominador comum: decidiram todos regressar a Portugal. Contra a maré e contra a geografia. Apesar da crise, apesar do FMI.
"Quando comunicámos à família através do skype que íamos voltar, toda a gente começou "Nãaaoo! Fiquem aí, nem pensem nisso!", começa Alexandre Gamelas, 32 anos, recém-chegado de Nova Iorque, com gabinete de arquitectura no n.º 351 da Rua do Almada. É um prédio antigo, sem elevador, numa rua onde as chamadas indústrias criativas convivem porta-sim porta-sim com o velho comércio de ferragens, no centro do Porto. A esta sala chega-se por umas escadas de madeira velha. O tecto é lindíssimo, em estuque. O mobiliário foi resgatado do lixo de uma escola em vias de remodelação. "Vamos fazendo a decoração nos intervalos do trabalho", conta Catarina, a companheira, também arquitecta, também recém-regressada de Nova Iorque.
Despediram-se do emprego com salário certo e devolveram a chave do apartamento de 25 metros quadrados no Lower East Side para se estabelecerem por conta própria em Portugal. "Os nossos clientes continuam a ser norte-americanos e o facto de termos cá a nossa base operativa permite reduzir custos e dar assistência aos projectos que eles têm na Europa", diz Alexandre. Não foi uma aventura em que se tenham metido sem pensar uma, duas, quarenta vezes. "O mercado em Portugal é pequeno para tantos arquitectos, há pouco profissionalismo, os clientes pagam mal. Mas Nova Iorque é uma cidade de passagem, não queríamos viver lá o resto da vida e queríamos mesmo abrir o nosso atelier, o que, nos Estados Unidos, implicava custos astronómicos".
Resultado: trabalham em Portugal no fuso horário de Nova Iorque, com o aeroporto a 20 minutos e com a mais-valia de trabalharem segundo a escola norte-americana. "Desde que consigamos alcançar o mercado estrangeiro, Portugal tem muitas vantagens. O custo do trabalho é baixo e a qualidade é alta, o que é uma conjugação que não existe nem na China nem nos Estados Unidos".
Deram-se um prazo de três anos. "Nenhuma porta ficou fechada, ainda estamos em idade de correr riscos. Por enquanto está a correr bem, estamos a trabalhar 60 horas por semana". O futuro em aberto, portanto, mas com uma certeza: "É muito entusiasmante vir para um país onde há tanto a fazer para melhorar. E a nossa geração, pela formação que tem e pelo que viajou, está preparada para mudar as coisas".
"Já chega. Vou regressar"
Na porta em frente, o alfaiate Ayres Gonçalves fala do que o fez comprar o bilhete de regresso desde Nova Iorque. "A família, os amigos, os cozinhados da minha avó, o mar". Quem assim fala trabalhou com o mestre de Alexander McQueen e costurou fatos assertoados para o príncipe Carlos, a partir de Savile Row, Londres. Uma manhã, à beira de fazer 30 anos, acordou em Manhattan e decidiu: "Já chega. Vou regressar a Portugal, é lá que me sinto bem". Tinha passado o último ano na ponte aérea entre Nova Iorque e Hong Kong. "Ia fazer controlo de qualidade porque a nossa produção era feita na Ásia".
Na bagagem trouxe os contactos dos clientes europeus e a convicção de que seria possível trabalhar com eles a partir daqui. "Conheço fornecedores de todo o tipo de tecidos cá em Portugal - o nosso país sempre foi forte em indústria têxtil - mas quando regressei não pensei "Vou viver em Portugal". Não, eu vim viver e trabalhar para a Europa que é cada vez mais um país e menos um continente". Que assim é prova-o o facto de 90 por cento dos seus clientes serem estrangeiros. Ainda agora saiu um daqui que, sendo português, vive em Bruxelas. De dois em dois meses, vai a Londres onde há uma marca de tecidos que lhe disponibiliza uma sala para fazer provas. "Mando um email aos clientes uns dias antes e eles aparecem. Vou de manhã e à noite já durmo em casa". Neste espaço o tom é de quem está em trânsito. Há um espelho de corpo inteiro, uma velha Borletti, que quase nunca é usada porque os fatos são cosidos à mão, casacos em repouso nos cabides. Uma porta com uma varanda liliputiana a apontar os recantos que o Porto só mostra a quem nele vive. Em trânsito porque: "Os dez por cento dos meus clientes que são portugueses estão em Lisboa e, por isso, não devo ficar pelo Porto". Acredita que só em Setembro perceberá se valeu a pena. "Cheguei há dois meses, numa época má porque ninguém compra fatos para ir para a praia, mas em Setembro começa a nova época e aí se perceberá se se justificou o regresso". Quanto ao FMI, nunca lhe travou o passo até agora. "O meu género de cliente é da classe alta e sempre ouvi dizer que clientes para Rolls Royce e Bentleys nunca faltaram. Agora quanto ao país..."
Quanto ao país, não hão-de faltar clientes para os sapatos que saem da cabeça de Inês Caleiro. São sapatos e são homenagens a grandes peças de arquitectura ao mesmo tempo. A primeira colecção marca Guava, 650 pares made in Portugal, mais exactamente made in São João da Madeira, estreia em Setembro em Portugal, Espanha e Holanda. Os mais atentos já terão reparado neles nos pés de Ana Bacalhau, dos Deolinda. "Foi a primeira figura pública a dar a cara pela marca. Contactei-a pelo Facebook e ela adorou o calçado. A partir daí os seguidores da página da marca dispararam", conta Inês, 27 anos. Biografia: licenciou-se em Design Gráfico, em Lisboa. Seguiu para uma pós-graduação na London College of Fashion, onde arrebatou o Best Student Award. Seguiu-se o estágio de seis meses na Jimmy Choo e dois empregos na área da joalharia. Em Janeiro de 2010, saltou para Washington para um estágio financiado pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal. Há um ano, regressou ao país, disposta a investir as poupanças na sua marca de calçado. "Temos uma indústria de calçado muito boa e isso faz de Portugal uma plataforma estratégica. É importante que os jovens empreendedores sejam uma lufada de ar fresco no meio desta crise. Eu já estou a exportar e espero ajudar a provar que os portugueses são bons naquilo que fazem".
"As crises são tempos de mudança e de oportunidades", confia também Dulce Mendonça, 33 anos, a falar-nos ao telefone desde São Paulo, Brasil, mas de malas mais do que feitas para Lisboa. Saiu do país há sete anos, trabalhou quatro em Londres e mais três na capital económica da América Latina. Sempre no sector bancário - Citigroup e Banif -, sempre na área de project finance. "Foram sete anos a trabalhar para grandes grupos e sinto que chegou a hora de avançar com os meus projectos". Sobre as ideias de negócio que traz na bagagem não se lhe arranca nem mais uma sílaba, mas não se importa de alardear as vantagens de Portugal. "Os portugueses são óptimos profissionais, muito qualificados. Se lhes pudesse apontar um defeito, por comparação com os ingleses, diria que são menos pragmáticos e mais lentos a tomar decisões. Em Inglaterra trabalha-se de forma mais desapaixonada e as coisas acabam por fluir melhor, com menos esforço, enquanto aqui a produtividade por vezes sai afectada por questões como a burocracia".
"Espírito nacionalista"Do Brasil, ficou-lhe o optimismo. "A capacidade que os brasileiros têm de enfrentar as dificuldades com optimismo é a única coisa que têm a mais do que nós. De resto, Portugal é um país maravilhoso para se viver, tem uma qualidade de vida excelente, com escolas, hospitais, estradas - tudo fantástico".
O nascimento da filha reforçou essa equação porque, criar uma bebé numa metrópole com 20 milhões, poluída e insegura mexe com os nervos de qualquer um. "São Paulo é maravilhosa para jovens ou casais sem filhos, mas, para famílias, o trânsito, a poluição e a insegurança, sendo geríveis, não deixam de ser uma preocupação". Regressa diferente de quando partiu em 2004. "Mais aberta, menos predisposta a julgar os outros, mais capaz de relativizar". Trouxe-a "o espírito nacionalista, a vontade de contribuir para que o país saia da situação em que está".
Elisabete Duarte, 34 anos, já deu o benefício da dúvida. Apostou no país e perdeu. Há cinco anos trabalhava como arquitecta em Nova Iorque. Vivia com o marido, também arquitecto, em Astoria, Queens. "Tínhamos uma vida confortável. Não era de luxo, mas era bastante confortável". Mas ter o filho de um ano, lá... Mas a recessão norte-americana a impor reduções nos salários de ambos... Mas a lembrança de verões amenos que nunca mais acabam a remoer-lhes nas entranhas... Vieram.
Foi há dois anos. Dispostos a ganhar menos, mas a acreditar no Estado Social, nas creches públicas de qualidade. "Levámos uma chapada na cara. Claro que os cuidados de saúde subsidiados pelo Estado ainda vão funcionando mas, de cada vez que vou ao médico, perco um dia de trabalho, porque a consulta pode estar marcada para as nove que eu acabo por passar lá o dia inteiro à mesma". Creches também não. "Na zona onde moro, só há escola pública para crianças a partir dos três anos". Tradução prática: mais de metade do salário que Elisabete ganha no atelier de arquitectura onde trabalha a recibos verdes vai para o colégio do filho. "Prefiro andar de transportes públicos e dar uma boa educação ao meu filho do que ter um carro e tê-lo mal entregue durante o dia". Claro que, com isso, o projecto de ter mais filhos, e a perspectiva de poderem beneficiar de uma licença parental de seis meses ("em Nova Iorque a licença foi de um mês"), ficou em banho-maria.
Partir para regressar
Poderia não ser tão grave se o marido, que trabalhava como arquitecto numa construtora do Algarve, não tivesse ficado desempregado há dois meses. Até então, e durante um ano e meio, eram Elisabete e o filho em Lisboa e o marido no Algarve. "Víamo-nos de quinze em quinze dias, mas achávamos que era um investimento que tinha que ser feito se queríamos ficar em Portugal".
Elisabete mora numa casa que era da avó, com móveis que eram da avó, e o que poupavam em renda ia financiando a esperança de poderem insistir no país. Agora já não. "Só com um salário, não aguentamos sem a ajuda de familiares. A situação tornou-se insustentável". Eis então de novo a vontade de arriscar Nova Iorque. "Ficámos com contactos das empresas onde trabalhámos e o que nos dizem é que as empresas estão a voltar a contratar". O filho tem dupla nacionalidade, Elisabete tem green card (autorização de residência) porque os pais vivem nos EUA, o marido está a tratar de conseguir visto. "Não estou arrependida por termos voltado porque, se não o tivéssemos feito, estaríamos lá mas a querer regressar. Também existe frustração no facto de se viver num sítio com vontade de partir. Regressando agora, vou mais preparada para ficar."
Público, aqui.