por Natália Faria
Com o marido na Arábia Saudita e dois filhos na pré-adolescência, Leonor liga-os por computador para que possam tirar dúvidas a Inglês e a Matemática, mas "não é a mesma coisa". Sofa, com o marido num vaivém entre Angola e Portugal, aprendeu a viver a três - ela e os dois filhos - e aguenta-se na convicção de que a emigração do marido é "a prazo". José continua inteirado dos passos das filhas - uma na Dinamarca, outra no Brasil -, mas sente falta do toque físico.
Numa altura em que a emigração acelera a um ritmo calculado de 100 mil saídas por ano, a saída do país faz-se, todos concordam, sem a carga dramática que a caracterizava nos anos 1950 e 1960. Em vez de irem a salto para França, os novos emigrantes viajam em low cost. O Skype diminuiu as distâncias, o Facebook também. Por outro lado, como nota o sociólogo João Teixeira Lopes, "a mobilidade foi interiorizada pelas pessoas". Desde logo "porque o país se tornou mais pequeno, por causa das auto-estradas, e depois porque as fronteiras se redefiniram em termos simbólicos: tornaram-se ficcionais, administrativas", nota ainda o presidente do departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que está a apurar as diferenças entre a emigração portuguesa actual e a antiga, tendo França como destino e espaço de referência. "Mesmo que não sejam agentes activos da mobilidade, os jovens vivem-na no espaço virtual", insiste o sociólogo.
Mas, apesar de em 2008 os jovens dos 15 aos 29 anos de idade terem representado 63% das saídas, conforme lembra o investigador Jorge Malheiros, no texto Portugal 2010: o regresso do país de emigração?, a crise tem forçado a esta mesma opção pessoas mais velhas. "Na faixa dos trintas e muitos e quarentas, as sociabilidades estão mais territorializadas, é mais difícil reconstituir círculos de amigos, dá-se uma separação dramática dos cônjuges, os filhos muitas vezes ficam entregues aos avós: aqui já estamos a falar em desestruturação e, nesse sentido, esta nova emigração - sofrida e, por vezes, contra vontade - já se aproxima mais do perfil tradicional, pelos fenómenos de desenraizamento que lhe estão associados", retoma Teixeira Lopes.
Se estudos houvesse sobre a factura da emigração, teriam que considerar os que como Leonor Silva e os filhos ficam, vendo os outros membros da família partir. "A saída do meu marido implicou uma mudança gigantesca na gestão familiar", introduz esta funcionária numa loja de telecomunicações. Com 47 anos e dois rapazes de 14 e 12 anos, viu-se sobrecarregada com um dia-a-dia que tem que se repartir entre o trabalho, o transporte dos filhos à escola e às actividades, a confecção das refeições, as consultas no médico, as idas ao supermercado, ao banco, às Finanças.
"De repente, comecei a ter medo de adoecer, porque, se isso acontecer, os meus filhos ficam sozinhos e sem saberem o que fazer. Tive que criar um plano de emergência, do género deixar contactos de amigos a quem eles podem ligar durante a noite. Era algo que antes nem me passava pela cabeça". Tem sido assim desde que, há um ano, o marido saiu da empresa onde trabalhava há 15 anos como engenheiro civil para arriscar a Arábia Saudita. "A empresa estava a reestruturar os quadros, consoante as obras iam acabando. Quando o meu marido saiu, demos uma margem de seis a oito meses, em que ainda equacionámos a possibilidade de ele continuar cá, mas percebemos logo que ia ser difícil, porque não havia contratos novos e o Governo estava a cancelar todos os contratos que tinha".
A opção pela Arábia Saudita foi tomada a quatro. "Os filhos concordaram que era uma forma de o pai contribuir com a sua mais-valia noutro país e acharam bem, já que este país não estava a usufruir das competências dele". Leonor, apesar de garantir que manteria o "sim" que deu há um ano, assume que não tinha ideia do que a esperava. "A questão da distância física com o Skype fica mais facilitada, mas a Arábia Saudita não é a Europa: as comunicações falham muito e é uma ansiedade diária". Há muitas conversas que ficam a meio, aniversários "terríveis" por causa das ausências. Quando a saudade dói, entretêm-se a analisar o globo. "Começamos a dizer uns aos outros que o pai não está assim tão longe. Que até tem a sorte de viver num país limpo e de poder fazer mergulho. No fundo, estratagemas para minimizar o impacto da coisa".
O que não se pode minimizar: o facto de Leonor ter passado a ter que deixar os filhos na escola todas as manhãs e de estes terem passado a regressar a casa sozinhos, de metro. O facto de Leonor ter passado a acumular as consultas nos médicos com as reuniões de pais na escola e com a orientação nos trabalhos para casa. "A parte da Matemática e do Inglês estava toda com o meu marido, porque eu não tenho queda nenhuma para essas áreas. Agora, tiram algumas dúvidas pelo Skypemas não é a mesma coisa". O facto de ela ter passado a sentir que não pode transigir uma vírgula em termos de autoridade junto dos filhos. "Se a coisa descambar em termos de autoridade, não tenho ninguém ao lado para assumir o controlo. Nesse sentido, tornei-me mais vigilante e um bocadinho má da fita".
Distância tinha "muito mais peso" nos anos 1950 e 1960
As mudanças ocorridas no seio da família, em que o pai deixou de ser mero provedor de recursos económicos para partilhar muitas das tarefas quotidianas, contribuem para que a emigração se tenha tornado mais difícil para os que ficam. "É verdade que, nos anos 1950 e 1960, a distância tinha muito mais peso, não havia telemóveis nem Internet, os telefones eram raros e caros, e hoje já não se pode falar das viúvas de vivos, como escreveu alguém falando sobre a emigração dessa altura", recua Jorge Malheiros. "Mas a emigração continua a provocar défices afectivos que até podem ser maiores se considerarmos que os homens já não são só os provedores da família, tendo assumido um papel muito activo na ajuda com os deveres, na partilha dos jogos de futebol ou de computador...".
"As tarefas eram muito partilhadas entre os dois", confirma Sofia Leandro, de 38 anos, trabalhadora na área das telecomunicações, dois filhos de 8 e 4 anos de idade, e um marido que há um ano se mudou para Luanda, em Angola, para prosseguir carreira na área da consultadoria de telecomunicações. "Ele ainda não tinha sido confrontado com o desemprego, mas pressentia que podia tornar-se uma realidade, porque a área estava estagnada". Agora passa um mês lá e duas semanas com a família em Lisboa. "Era ele que costumava levá-los de manhã à escola, aos fins-de-semana fazíamos actividades conjuntas, coisas tão simples como ir ao parque infantil. De repente, mudou tudo. "Quando preciso de ir ao supermercado, tenho que os levar comigo, e fazer compras ao mesmo tempo que se controla duas crianças é muito mais difícil".
Inicialmente, Sofia tentou que o jantar continuasse a fazer-se a quatro. "Punha o computador ao pé da mesa de jantar e tentava que a conversa decorresse enquanto jantávamos, mas as coisas desestabilizavam-se muito e começámos a falar ao serão". O acordo inicial foi suspender a emigração "se algum dos envolvidos não aguentasse a pressão". Apesar do cansaço, Sofia garante que não chegou a altura. "Isto é uma experiência a prazo. E é uma emigração confortável, no sentido em que pressupõe uma valorização profissional, não há a carga dramática que devem sentir os desempregados que vão lutar pela subsistência. Por outro lado, a empresa garante um alojamento atractivo e agradável". Factores que permitem a Sofia brincar com a situação. "A vantagem da separação para o casal é que se discute menos. E até eu deixei de ficar nervosa por não ter a casa sempre hiperarrumada".
No caso da emigração jovem, Teixeira Lopes também aponta novidades: as famílias começam a ver a saída dos filhos como válvula de escape. "Fizeram imensos sacrifícios para que os filhos tivessem qualificações superiores e o que é que acontece? O mercado de trabalho fica bloqueado. Aí, encaram com menos dramatismo que outrora a possibilidade de os filhos poderem sair, mas também porque as famílias-providência estão a atingir a saturação, isto é, a economia de reciprocidade entre avós, pais e netos entrou em desequilíbrio porque, com o desemprego a atingir em força os 40 e os 50 anos, deixou de haver dinheiro para a solidariedade familiar".
Não terá sido o que se passou em casa de José Lourenço. A filha mais velha, Sofia, "antecipou-se ao desafio do primeiro-ministro" e instalou-se na Dinamarca há oito anos. A mais nova, Inês, "descobriu que, em S. Paulo, Brasil, havia potencialidades que o mundo das artes em Portugal não oferece" e emigrou também. "Não foram exactamente empurradas. Foi também uma opção de vida". A que não esteve alheia, claro, a dificuldade em conseguirem cá as saídas profissionais que encontraram no estrangeiro. Nesse sentido, este professor de 60 anos sente-se satisfeito por saber que as filhas trabalham naquilo de que gostam: a mais velha na liga dinamarquesa contra o cancro e a mais nova como artista plástica. "Não há aqui o dramatismo que havia quando os pais da minha mulher foram obrigados a ir a salto para França", insiste, repetindo os elogios ao Skype, email e chats do Facebook e derivados. "Não falamos todos os dias, mas até é mais por causa dos fusos horários. Agora, não vou mentir: claro que custa estar sem elas, são sangue do meu sangue, e há alegrias que queríamos partilhar sem ser por telefone. Falta o ombro, o abraço, o toque. Mas, enfim, temos que superar isso, até porque elas vão fazendo perguntas sobre o que se passa cá e não me parece que estejam dispostas a regressar tão cedo".
Apesar de estar a digerir a emigração do marido como uma "situação a prazo", Leonor adianta que, mais do que o seu regresso, o mais provável é juntarem-se todos no estrangeiro. Principal problema: "A Arábia Saudita não é um paraíso, aliás, é um bocadinho assustadora, porque lá não poderia trabalhar nem conduzir; as mulheres são muito maltratadas". E depois, porque não está disposta a prosseguir uma existência de "mãe solteira", acrescenta: "Dependendo do país, a ideia é mesmo juntarmo-nos todos lá fora. Aliás, com todas as reticências dos adolescentes, os miúdos já encaram a emigração como uma solução natural". No caso de Sofia, Abril será o mês de "reponderar tudo". E também aqui não está totalmente descartada a hipótese de se juntar ao marido. "Sinceramente, não me atrai muito a ideia, mas a verdade é que há dois anos também não me imaginava nesta situação de "mãe solteira". Não está decidido nem planeado, mas não significa que não possa acontecer".
Governo tem de avaliar quanto custa a emigração ao país
Considerar que o ritmo de emigração dos portugueses poderá abrandar nos próximos anos é uma previsão, no mínimo, optimista. Por isso, a necessidade de o Governo analisar as suas implicações é reclamada pelos investigadores do fenómeno, que comungam também do alerta: é urgente garantir que os emigrantes continuam conectados com o país, sob pena de se estar a desperdiçar todo o potencial social e humano que aqueles representam. "Se estamos a falar de emigrantes qualificados, há-que saber quanto custou formá-los e quanto é que o Estado está a perder por não estar a aproveitar as suas qualificações", aponta Pedro Góis, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. "O país está a viver um movimento de saída igual ao dos anos 1960 e 1970 e, portanto, dentro de poucos anos, teremos mais de um milhão de pessoas que saíram no país no meio desta crise", aponta.
Jorge Malheiros, do Instituto de Geografia da Universidade de Lisboa, também acha que "falta uma análise fundamentada sobre os impactos reais do crescimento da emigração sobre as famílias". "Sendo um fenómeno de magnitude forte e recente, era preciso percebê-lo primeiro para depois pensar nalguma forma de acompanhamento destes emigrantes e das suas famílias". Para os que ficam, "poder-se-ia pensar em incorporá-los nalgumas das estruturas de apoio que já existem, por exemplo com a ajuda no transporte das crianças, eventualmente com apoio psicológico ou com processos de facilitação no acesso aos bancos para quem não esteja habituado a isso". Para os que partem, o essencial, segundo Jorge Malheiros, seria garantir o reforço dos laços da comunidade repatriada com o país.
"Não é só dizer "Saiam porque isto está muito difícil". É dizer "Saiam, mas mantenham-se conectados com Portugal", porque, sem incorrer em nacionalismos bacocos, estes emigrantes são efectivamente uma mais-valia em termos de capital humano e das ligações de Portugal ao exterior, ou seja, podem ser uma ligação em termos de investimentos", sustenta. "É o momento de fazermos com a emigração o que fizemos com a imigração e criarmos o cargo de alto-comissário para a emigração ou, pelo menos, de anexar essas competências ao alto-comissário para a imigração", concorda Pedro Góis. Tal "atenção" aos emigrantes justifica-se sobretudo numa altura em que países como o Luxemburgo já se puseram a estudar os portugueses recém-chegados ao país. "São portugueses que chegam e que, passados poucos meses, estão a cair no Estado Social do Luxemburgo, recorrendo ao subsídio de desemprego ou ao equivalente deles do nosso RSI.
A percentagem de portugueses entre os beneficiários do sistema social aumentou de tal maneira que o Governo local encomendou um estudo para perceber o que está a acontecer", revela, considerando que "um observatório ou um alto-comissariado para a emigração poderiam colocar a diplomacia a actuar defendendo os interesses dos portugueses prevenindo o eventual ressurgimento de fenómenos de xenobia e racismo por parte dos países de acolhimento". "Afinal", conclui, numa alusão ao incentivo de Pedro Passos Coelho à emigração, "livrarmo-nos de uma percentagem do desemprego potencial aconselhando os cidadãos a emigrar para outro país pode não ser lido lá fora como uma recomendação muito ética, sobretudo se ameaça sobrecarregar o estado social de outros países".
Público, aqui.