Carla Marina Mendes | cmendes@destak.pt
Já há médicos a deixar Portugal em busca de melhores condições?
Sim,
há médicos a emigrar, nomeadamente especialistas, devido à degradação
das condições de trabalho em Portugal e porque recebem ofertas
tentadoras de países europeus considerados até mais evoluídos que o
nosso, mas que reconhecem a qualidade dos nossos médicos e da formação
médica no País.
É possível quantificar quantos abandonaram o País?
Já
algumas dezenas e esta situação irá certamente acentuar-se porque temos
neste momento um excesso de alunos nas faculdades de Medicina, superior
às necessidades do País. Este ano vamos, pela primeira vez, ter um
défice de 200 vagas para a formação pós-graduada relativamente ao número
de candidatos. E essas duas centenas de jovens ou ficam em Portugal
como médicos sem especialidade - e tentam no ano seguinte -, ou procuram
outros países para tirarem a especialidade e até mesmo para o exercício
profissional. E muitos dos milhares de jovens portugueses que foram
tirar medicina para o estrangeiro já estão a pensar não regressar,
porque verificaram que não têm perspetivas de futuro no País.
Falou
no excesso de alunos nas faculdades de medicina, mas os portugueses
debatem-se, por exemplo, com a falta de médicos de família...
Há
duas realidades distintas: uma é a hospitalar, em que há dificuldades
de acesso dos doentes porque a capacidade instalada, em termos físicos,
não está a ser aproveitada. E não é por falta de profissionais, mas
porque os blocos cirúrgicos não funcionam 12 horas por dia, porque o
Estado não quer, porque pagar mais cirurgias gera mais despesa. As
listas de espera poderiam ser menores, muito menores, ou até
tendencialmente inexistentes, se o Estado aproveitasse a capacidade
instalada no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
E no que diz respeito à medicina geral e familiar? Faltam médicos?
Sim,
há falta de especialistas porque não houve uma aposta nos cuidados de
saúde primários. Agora está a haver, mas vai levar alguns anos a
resolver o problema. Nós apresentámos algumas soluções, que passam,
nomeadamente, por contratar médicos reformados em vez de se importarem
médicos de outras nacionalidades sem a especialidade (isto sem qualquer
tipo de xenofobia). Aproveitar os médicos reformados, com dezenas de
anos de experiência e que por um suplemento ao seu vencimento poderiam
voltar a assumir pelo menos parte das suas listas, permitiria resolver
rapidamente o problema de centenas de milhares de portugueses sem
médicos de família. Mas isso implica mais investimento.
Tendo em conta os constrangimentos financeiros e os cortes impostos, como vê o futuro da medicina em Portugal?
A
medicina, e o SNS em particular, estavam bem. E não têm problemas
intrínsecos. Os problemas são de facto os efeitos da crise económica do
País, que têm sido refletidos na saúde, mais até do que noutros setores
da sociedade. E por motivos ideológicos.
Mas a sustentabilidade do SNS tem sido várias vezes posta em causa...
Não
há nenhuma razão para que se afirme que o SNS não é sustentável e, se
compararmos com os parâmetros da OCDE em termos de saúde, os nossos são
excecionais, são dos melhores do mundo e a nossa despesa per capita está
muito abaixo da média. Nós temos um bom, não, temos um excelente SNS. É
possível corrigir algumas disfuncionalidades e alguns desperdícios e
temos chamado a atenção para um que, no ano passado, foi referenciado
numa auditoria do Tribunal de Contas: os desperdícios nas aquisições de
medicamentos, dispositivos médicos e outros consumíveis. Cada hospital
ou conjunto de hospitais faz o que quer e o que lhe apetece sem saber o
que os outros estão a fazer. Não há troca de informação, não há combate
ao desperdício e a outro tipo de laxismos. Estragam-se centenas de
milhões de euros por ano que, bem geridos, acabariam com as dúvidas
sobre a sustentabilidade do SNS e sobre o acesso à inovação terapêutica,
dramaticamente necessário para os doentes.
Fala-se em mais cortes. Concorda?
O
SNS comporta melhor gestão, mas não tem espaço para mais cortes, porque
há dificuldades de acesso, há dificuldade em pagar as taxas
moderadoras, em ter acesso a alguma medicação essencial, embora os
medicamentos tenham reduzido - e bem - o preço. Mas a situação económica
das famílias piorou drasticamente. Não podemos pensar que vamos cortar
recursos e que isso não tem consequências, porque os doentes estão lá e
têm que procurar outros recursos, muitas vezes mais caros. Fecharam-se
muitas camas em hospitais concelhios, camas baratas, que prestavam
serviço de qualidade e proximidade. Para onde foram esses doentes? Para
os hospitais distritais e centrais onde as camas são mais caras e
distantes.
Seria vantajoso colocar médicos na gestão da saúde?
Um
estudo nos EUA demonstrou que os hospitais mais eficientes eram aqueles
que eram geridos por médicos e não por gestores. Os gestores são
essenciais, mas o médico tem a sensibilidade e o conhecimento da
complexidade da saúde, do sistema de saúde e do seu funcionamento. E
essa sensibilidade para as questões da saúde melhora a gestão feita por
médicos.
PONTOS DE VISTA
CENTRALIZAÇÃO DOS HOSPITAIS
«Centralização
não gera necessariamente poupança. Pelo contrário, pode aumentar as
dificuldades. E nós temos dado um exemplo concreto, que toda a gente
entende, mas que não foi corrigido - não sabemos bem porquê -, que foi a
deslocalização de 220 doentes HIV de Torres Novas para Santarém,
pensando-se que, de alguma forma, se ia poupar alguma coisa. No mapa
afastou-se cinco centímetros, mas na realidade são 45 quilómetros de
autoestrada com portagem. Ida e volta são 90 km e isto para 220 doentes
que, em média, têm cinco consultas por ano. Ninguém fez contas, ninguém
pensou no impacto. Poupou-se? Não. Afastou-se os recursos da população,
alguns doentes deixaram de ir à consulta e estão menos controlados.»
REGIME BASEADO EM SEGUROS
«Eu
admito que as pessoas tenham fé em determinadas filosofias políticas.
Mas o que não podem é deixar de analisar as consequências práticas
dessas filosofias. Temos o paradigma americano, que é o da medicina
privada baseada em seguros de saúde. E o que é que aconteceu? O país tem
dos piores indicadores do mundo civilizado, diferenças de acesso aos
cuidados brutais, em função das diferenças sociais e da capacidade
económica e o sistema mais caro do mundo, que gasta per capita o triplo
daquilo que se gasta por cá. É óbvio que não podemos ir por aí.»
PÚBLICO VS PRIVADO
«Como
princípio, concordo com a separação entre o exercício da medicina
pública e privada. Mas é preciso criar condições para que os diretores
de serviço possam optar pela dedicação única ao SNS. E ninguém pode
esperar que um diretor de serviço, que tem uma responsabilidade imensa
numa instituição de saúde, se dedique exclusivamente ao SNS por dois mil
euros por mês.»
SNS: SIM OU NÃO?
Serviço
Nacional de Saúde sempre. Sempre porque comparativamente com outros
sistemas de saúde é o mais eficiente e mais barato. Nós temos que
racionalizar, organizar o sistema, combater o desperdício, combater o
laxismo, a ineficiência.»
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