Agosto de 2013. Elizabete Silva Carvalho segue ao volante com as duas filhas menores, de 3 e 8 anos, na estrada de Morreira para Santo Estêvão, em Braga. Nisto, depara-se com um carro parado no meio da faixa de rodagem. Portas abertas, ninguém à vista. Repara na matrícula francesa e sai-lhe um desabafo pela janela aberta do carro. "Estes ‘avecs' chegam aqui e acham que mandam nisto tudo." Segundos depois, Elizabete ultrapassa enfim o carro vazio e segue o seu caminho. Mas, poucos metros adiante, o carro que há pouco lhe estava a bloquear o caminho ultrapassa-a e, numa manobra brusca, trava à sua frente, obrigando-a a parar. O condutor sai do veículo furioso, dirige-se a Elizabete e dispara o insulto: "Pega lá o ‘avec' minha grande p***". Ato contínuo, agride Elizabete com "um estaladão".
É esta a versão que Elizabete, de 30 anos, contou em julgamento, no processo cuja sentença foi lida no Tribunal de Braga na sexta-feira. A empregada têxtil apresentou queixa à polícia logo no dia da agressão e nem as tentativas de um acordo da advogada do agressor e até do seu pai a demoveram de retirar a queixa. Até porque, estranho acaso, o emigrante que a agrediu foi reconhecido pela sua filha mais velha. "Descobri no mesmo dia que ele é vizinho da minha sogra. E não é conhecido na zona pelos melhores motivos." Segundo Elizabete, o arguido tem por alcunha ‘Manecas' e, explicou a juíza na primeira sessão do julgamento, tem cadastro: cumpriu pena de prisão por roubos e outros crimes.
O agressor vive atualmente em França, onde trabalha na construção civil, e não compareceu na primeira das duas sessões previstas para o julgamento. No dia do desacato, o marido de Elizabete falou com ele. "O meu marido estava muito revoltado, mas conteve-se porque eu tinha apresentado queixa na polícia. O homem pediu-lhe desculpa, mas a mim nunca me disse nada", conta Elizabete.
FAMÍLIA DE EMIGRANTES
Ironia das ironias, grande parte da família de Elizabete vive e trabalha no estrangeiro. "Do lado do meu marido, estão quase todos em França", conta à ‘Domingo'. E quando os recebe no verão, garante que os trata a todos por ‘avecs', sem que alguma vez tenha havido reações negativas. "A própria juíza disse que não se pode considerar a expressão ‘avec' um insulto, não sei por que é que o homem ficou tão ofendido", diz Elizabete. Não perdoa ao homem que a agrediu à frente das filhas, mas garante que não pediu qualquer indemnização. O pai do agressor ainda a contactou para tentar que retirasse a queixa, mas Elizabete manteve-se inflexível. A acusação está a ser conduzida pelo Ministério Público, enquanto o arguido tem uma defensora oficiosa, uma advogada de Braga.
EXPRESSÃO DOS ANOS 60
Foi a grande vaga de emigração para França nos anos 1960 que deu origem à expressão ‘avec'. Por todo o País, mas sobretudo no Norte, centenas de milhares de portugueses partiram à procura de emprego e de uma vida melhor. A maioria era gente com pouca instrução e quando regressava a casa nas férias de verão vinha a falar uma mistura de português e francês que convidava ao gozo dos que ficaram por cá. Daí que os ‘avecs' sejam os tais que voltam à aldeia com bons carros de matrícula francesa, novos usos e costumes e muitas histórias para contar.
Com o passar dos anos, o termo foi caindo em desuso, até por causa das mudanças que se verificaram tanto na sociedade portuguesa como na francesa.
"Os filhos dos emigrantes portugueses são hoje mais instruídos, muitos têm formação superior. Continuam a visitar Portugal como um lugar afetivo, sabem que estão ali as suas origens. Hoje é menos frequente os emigrantes serem olhados de lado quando vêm a Portugal, até porque, dada a crise que o país vive, a despesa que os emigrantes fazem nas terras que visitam é uma ajuda preciosa para a economia local."
A explicação é de Paulo Marques, um dos mais destacados emigrantes portugueses em França. Nascido em Ourém, partiu novo para aquele país, onde abraçou uma carreira política. Atualmente é vereador no município de Aulnay-sous-Bois, nos arredores de Paris. Foi eleito pelo partido UMP, um dos maiores do país. É também presidente da associação Civica, que tem por objetivo fomentar a participação dos portugueses na vida política e social de França. Continua a vir a Portugal todos os anos e garante: "Nunca me chamaram ‘avec' nem outra coisa parecida. E se o fizessem não daria muita importância."
Já Elizabete, também garante que vai continuar a tratar os familiares emigrados como ‘avecs'. Mas promete ter mais cautela quando estiver na rua.
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