Carlos de Matos queria por tudo deixar Paris. O português, então com 18 anos, tinha entrado clandestinamente em França com um amigo da sua aldeia (Carvide, na região de Leiria), mas deambulava há 48 horas por Draveil, um subúrbio a sul da capital francesa, numa busca frustrada pelo carro de um emigrante ali instalado que lhes prometera cama e roupa lavada. Cansado de dormir em bancos de jardim, entrou num autocarro para ir para a estação, onde apanharia um comboio rumo a Portugal. Tinha o dinheiro contado para a viagem, uns 500 escudos (hoje 100 euros em valores actualizados) que pedira a uma tia, em notas grandes. Mas o motorista não tinha troco.
Assim que saiu do autocarro para trocar a nota, avistou um carro familiar: era o emigrante de Carvide. Já não voltou. Foi em 1969 e por causa deste truque do destino ficou em Paris, onde ainda vive. Começou como electricista e acabou por se tornar o principal investidor de um megacentro de negócios para os chineses em França. "Se o motorista daquele autocarro tivesse moedas, a minha vida teria sido completamente diferente", diz o empresário à SÁBADO.
A vida de Carlos só o deixou ser criança até aos 9 anos, altura em que começou a trabalhar. Foi moço de recados do hotel/restaurante Cozinha Portuguesa, em Monte Real. Usava uma farda vermelha com botões dourados, adornada por uma boina redonda, e passava o dia a levar águas termais e jornais aos clientes - ganhava pequenas gorjetas. "Um dia, carreguei as malas de uma família rica, com uma filhota da minha idade. A menina engraçou comigo e começámos a brincar, até que os pais a afastaram. Foi a primeira vez que percebi que as elites não aceitam bem quem vem de baixo."
Antes dos fretes, o sonho de Carlos, o mais velho de cinco irmãos e uma irmã, era ser piloto de aviões. Crescera junto à pista de Monte Real e esbugalhava os olhos sempre que um avião descolava ou que passava por um piloto fardado. Estudou até ao 6.o ano, mas um recorde de faltas injustificadas nos primeiros três meses levou a que os pais fossem chamados pelo director e decidissem retirá-lo da escola comercial de Leiria.
Dois dias de pé num comboio
O castigo foi duro: com 12 anos começou a trabalhar numa fábrica
de vidros em Vieira de Leiria. "Nunca me vou esquecer do cheiro a óleo e a
transpiração no primeiro duche na fábrica", conta. "Eram 150
operários nus a tomar banho ao mesmo tempo num duche colectivo." Durante
seis anos, Carlos trabalhou no molde de garrafões de 20 litros. A máquina
pesava cerca de 200 quilos e o forno libertava um calor de 1.600 ºC .
Em 1969, poucas semanas após ter atingido a maioridade, decidiu num par de
horas emigrar para França. De Coimbra seguiu até Vilar Formoso, onde uma mulher
o ajudou a passar a fronteira para Espanha. "Pagámos-lhe 50 escudos [hoje
10 euros], o equivalente a uma semana de trabalho." Era "meia-noite,
estávamos num grupo de 30 pessoas e fizemos 20 quilómetros a pé até vermos as
luzes do lado espanhol". Seguiram-se dois dias em pé num comboio apinhado
de portugueses, sem poder sair para comer, porque perderia o lugar. Se a
polícia o interceptasse, era recambiado para Portugal. Sem ter sequer uma mala,
Carlos chegou a Paris. "Nunca tinha ido sequer a Lisboa e pensava que a
estação de Paris era parecida com a de Leiria. Quando vi tanta gente, fiquei em
choque." Ficou 15 minutos parado, a observar.
Instalado
em Draveil, o rapaz de Carvide demorou duas semanas a conseguir o seu primeiro
trabalho, como electricista. Viveu na bidonville (bairro de lata) de Champigny.
"As casas eram construídas com o resto do material das obras e as ruas
revestidas com paletes, para se poder andar sobre a água da chuva. Havia muita
lama e passava-se frio a sério", conta. A estadia em Champigny foi curta.
Carlos saltitava de quarto em quarto, de garagem em garagem. Foi numa das casas
de famílias portuguesas em que viveu que conheceu a primeira mulher, uma
porteira.
Três anos e meio depois de ter chegado a Draveil, desistiu de França. Regressou
a Portugal em 1972 e casou, já com a mulher grávida do primeiro filho. Queria
ir para a guerra. "Não estava adaptado em França e decidi ir para África.
A melhor forma era fazer a tropa, da qual tinha fugido, e ser mandado para a
guerra. Não queria combater. Queria conhecer aquela natureza, ir à caça e à
pesca. Se levasse um tiro, paciência. Estava pronto para morrer e casei para
proteger a minha mulher. Teria mais futuro como viúva do que como mãe
solteira."
O cabo Matos passou em Moçambique o melhor ano da sua vida. Como especialista
em morteiro pesado foi encarregue de guardar o acampamento, perto de Tete.
Inicialmente, o capitão não o autorizou a caçar por temer que fosse abatido
pela guerrilha. Mas o cabo era de ideias fixas e assinou uma carta em que
confessava ser desertor - se morresse numa caçada, o documento
desresponsabilizaria as chefias.
Na primeira investida matou uma vaca selvagem - dividiu-a com o guia, que
anunciou a acção do português à aldeia inteira. "Os locais passaram a
respeitar-me e julgo que foi por isso que nunca atiraram sobre mim." Até
ao 25 de Abril, passou a guerra a caçar e a fazer petiscos para o regimento.
"Ainda hoje gosto de cozinhar e levo para França sardinhas portuguesas e
os vegetais da minha horta. Cerca de 60% do que como vem de Portugal."
A experiência nos táxis do pai
No fim da guerra, ainda se tentou fixar em Leiria, ao volante de
um dos táxis do pai. Não gostou: "Ou se queixavam que falava de mais, ou
de menos, que andava depressa, devagar..." Voltou para França e foi
electricista por uns anos, até que outro acaso o fez empresário. De sucesso.
O dono, português, de uma empresa de reboco e acabamentos tinha a empreitada
parada por causa de uma máquina indispensável, que deixara de funcionar. A
troco de um almoço, Carlos ofereceu-se para a reparar - descobriu que se
tratava apenas de um fusível queimado. Durante a refeição, o proprietário da
empresa confessou-lhe que queria regressar a Portugal e propôs-lhe o trespasse.
Não pensou duas vezes: "Não tinha dinheiro mas ele disse que podia pagar a
crédito. Para mim era um grande passo. Sempre quis trabalhar por minha
conta."
Meses depois, tinha debaixo da sua alçada 10 empregados, um conjunto de
máquinas e camiões velhos e uma empresa, que baptizou de ERA, especializada em
reboco. Comprou o primeiro carro, um Renault 16. Hoje, tem mais de 40
automóveis, um avião de 1945 que comprou nos EUA e vários quadros e
esculturas.
A ascensão
deu-se, diz, de acordo com o lema dos emigrantes portugueses em França:
humildade, honra e trabalho. "Nos primeiros três anos, não toquei no
dinheiro com medo de não ter para pagar os ordenados. Não parava de trabalhar,
nem aos sábados e domingos. Aproveitava as reuniões com clientes para comer
bem, com o dinheiro das despesas da firma. De resto, era só sandes", diz.
"Segundo os meus cálculos, tenho uns 5 milhões de quilómetros na área de
Paris. Fazia uns 600 quilómetros por dia. Vivia mesmo a 300 à hora."
Entretanto, o casamento acabara. A esposa não quis ser secretária da empresa,
preferiu continuar a ser porteira e Carlos fartou-se: "Queria levantar voo
e ela queria ficar parada." O filho, mais tarde, viria a viver e a
trabalhar com ele.
A verdadeira Gaiola
Dourada
No início dos anos 80, conheceu a mulher que viria a evocar-lhe a recordação da
menina rica no quarto da Cozinha Portuguesa, quando era moço de fretes. Ela era
filha do dono do jornal Le Moniteur e pertencia à alta sociedade francesa.
Da primeira vez que foi convidado para jantar em casa dos sogros, "através
de carta registada", cometeu o deslize de pousar o cotovelo na mesa.
"O Carlos deve estar cansado", provocou a sogra. O português, ousado,
debruçou-se sobre a mesa, apoiado nos dois cotovelos, e fitou-a nos olhos:
"Não, por acaso até estou bem, senhora." "Foi o primeiro
episódio de quase 20 anos de brigas. Ela era da elite e eu um português, ainda
por cima emigrante, que eles consideravam gente de segunda.
Quando nos divorciámos, em 1994, ela pôs os nossos dois filhos
contra mim, ficou-me com a casa, com tudo. Tive de começar do zero, outra
vez", conta, agitando o braço direito, em que exibe uma tatuagem com o nome
de dois dos seus cinco filhos. Carlos casou pela terceira vez com uma mulher de
Viana do Castelo, com quem teve dois filhos e continua a viver.
Carlos teve que fechar a ERA. Era a maior empresa do ramo em França e chegou a
gerar 80 milhões por ano. Com a experiência e os contactos adquiridos, criou o
grupo St. Germain, virado para o ramo imobiliário, com nove pessoas da sua
confiança. Fez vivendas, apartamentos, centros comerciais, hospitais e clínicas
especializadas no tratamento de Alzheimer. E passou a gerir sete a oito
projectos em simultâneo, com valores entre os 7 milhões e os 30 milhões de
euros. Até que surgiram os chineses, com a possibilidade de fazer o negócio da
sua vida.
O gigante Paris-Ásia
Conheceu os parceiros chineses através de um cliente com quem
negociava a construção de um hospital: "Estavam à procura de um terreno
para um centro empresarial e queriam ser eles a fazê-lo. Expliquei-lhes que o
melhor seria delegar a construção a uma empresa com experiência no país."
E a St. Germain entrou no negócio. Um terreno com um milhão de metros
quadrados, junto ao aeroporto Charles de Gaulle, foi o ponto de partida para o
centro Paris-Ásia - uma minicidade dedicada às trocas comerciais entre a China
e a Europa. Na primeira fase, com abertura prevista para 2016, vão ser usados
apenas 280 mil metros quadrados. Com um toque nacional. "Fiz questão de
que 80% das empresas que participam na construção sejam
portuguesas."
Mas tiveram de respeitar "todas as imposições culturais
[chinesas], como a disposição dos edifícios ou a primeira pedra, que tem de ser
colocada num dia específico do calendário deles". Correu bem. Dentro de 20
anos Carlos Matos sonha ter o maior business
center da Europa, "com a mostra diária das invenções das
fábricas de todo o mundo" e ainda "uma avenida cheia de restaurantes
temáticos, adornada com peças de escultura e de pintura, para que possamos ter
acesso à atmosfera de vários países dentro do próprio centro".
Se não resultar, o empresário sabe, tal como todos os que acudiram à
"gaiola dourada", que há sempre um autocarro para regressar a
casa. Mas com os milhões que pode vir a facturar, é pouco provável que o
motorista lhe arranje troco.
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