[Um homem, uma mulher e um bebé, aos ais, caídos numa linha de comboio. Uma mulher de pé, curvada, a abraçar dois meninos que choram.] A mãe evita olhar para o televisor. [Um menino a entrar pela janela de um comboio, o corpo em suspenso, os olhos rasos de água. E outro a subir uma ribanceira com um bebé ao colo, num pranto.] A mãe prefere olhar para o que está a fazer - descascar legumes, cortar carne, pôr a mesa, comer, lavar louça, o que for. Revê-se no desespero de sírios, afegãos, iraquianos e outros empurrados pela violência. "Eu sei o que é fugir. Eu sei o que é fugir com um filho em cada mão e outro na barriga..."
Ao tempo que isso foi. A mãe tinha quase 30 anos, André quase nove, Duarte sete, eu nem fazia volume na barriga dela. Engravidara dois meses antes em Porto Amélia, hoje Pemba, a capital da província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. Mudara-se havia pouco para a Matola, contígua a Lourenço Marques, hoje Maputo.
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A mãe está prestes a completar 71 anos. Os caracóis esbateram-se. O cabelo ficou ralo. O rosto ganhou uma teia de rugas. As datas já se perdem na sua cabeça. Na de Ribeiro Cardoso não. Ribeiro Cardoso é jornalista, fez parte da Comissão Administrativa Militar que dirigia a Rádio Clube de Moçambique (RCM), escreveu o livro O Fim do Império: Memória de um soldado português/O 7 de Setembro de 1974 em Lourenço Marques.
Uma delegação do Estado português e outra da Frente de Libertação de Moçambique, a Frelimo, reuniram-se a 5 de Setembro em Lusaca, na Zâmbia, para negociar a transferência de poderes. Ao aceitar quem fez a luta como único representante do povo, Portugal dispensava cerca de duas dezenas de movimentos e partidos de formação recente. No dia da assinatura do acordo, a Praça de Mouzinho de Albuquerque, hoje Praça da Independência, encheu-se de gente inflamada, que desaguou na rua da RCM. Conta Ribeiro Cardoso que três elementos pediram para serem recebidos por ele e pelos outros militares que dirigiam a estação. Queriam acesso directo aos microfones para afirmar que alguém conduzira um carro com uma bandeira da Frelimo ao alto e uma bandeira de Portugal no chão e expressar desacordo com o acordo de Lusaca. O pedido foi-lhes negado. Volvido um quarto de hora, a turba invadiu o edifício.
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