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A expressão da emigração na arquitetura em Portugal
Ana Saraiva
Ana Saraiva é investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia. É, desde 2001, antropóloga no município de Ourém, assumindo atualmente a chefia da Divisão de Ação Cultural. Programou e dirige o Museu Municipal de Ourém. Participa em projetos de pesquisa e de programação centrados nas áreas da antropologia e da museologia, com publicações sobre discursos de representação cultural. Em 2017, a sua tese de doutoramento, Casas (pós) rurais entre 1900 e 2015: expressões arquitetónicas e trajetórias identitárias, foi publicada em livro.

 

Entrevista realizada em Lisboa, 25 de fevereiro de 2019, por Carlota Moura Veiga.
Também disponível em PDF na série OEm Conversations With.

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) – Ana Saraiva é doutorada em Antropologia, trabalha na área da emigração, transnacionalismo, património e identidades, o que deu origem ao livro Casas (Pós)Rurais entre 1900 e 2015: expressões arquitetónicas e trajetórias identitárias. Boa tarde Ana, obrigada por ter aceite o convite do Observatório da emigração. Nós gostaríamos, em primeiro lugar, de lhe perguntar se nos poderia falar um pouco sobre o seu percurso e o que a levou a escrever o livro Casas (Pós)Rurais entre 1900 e 2015: Expressões Arquitetónicas e Trajetórias Identitárias.

Ana Saraiva (à frente AS) –
Olá Carlota Veiga. Antes de mais, muito obrigada ao Observatório da emigração, à Cláudia Pereira, e a toda a esta equipa também de filmagem e de produção, a oportunidade de vir falar aqui deste livro que resulta de uma dissertação de doutoramento em antropologia e que tem antecedentes. Eu, na minha viagem profissional, digamos assim, fui trabalhando em áreas ligadas à arquitetura popular, um pouco inspirada também pelos trabalhos do Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Benjamin Pereira, aqueles estudos clássicos. Trabalhei em vários gabinetes técnicos locais, em projetos associados à revitalização de aldeias e vilas históricas, nomeadamente na serra da Lousã, em Góis e em Belverde, fiz algum trabalho também em São Pedro do Sul, em Lamego e, mais recentemente, nos últimos 16, 17 anos, já em Ourém, sempre com um olhar muito atento e muito interessado sobretudo nas arquiteturas em contexto aldeia. O tema depois em termos de doutoramento é repegado com um grande apoio de dois orientadores, o antropólogo João Leal e a antropóloga Margarida Fernandes, que me incentivaram e que também me deram um grande apoio e suporte nesta escolha e optei então por ir fazendo uma trajetória muito arriscada, mas muito consciente de trabalhar 100 anos, aproximadamente um século, da arquitetura em contexto de aldeia, tomando a alta estremadura, especificamente um concelho da alta estremadura com territórios privilegiados de campo, e na relação entre aquilo que é a arquitetura dos residentes com a arquitetura dos emigrantes, o que resultou então neste trabalho muito longo no tempo e também com algum trabalho de campo multi situado entre Portugal e França, que depois poderei explicar.

 

OEm – E como é que através do seu tema inicial, falou que tinha sido mais na parte arquitetónica das aldeias, como é que conseguiu chegar à questão da emigração

AS –
Quando comecei a pensar em trabalhar na minha monografia de licenciatura, a emigração, paralelamente às arquiteturas, era algo que me interessava muito. Mas quando começo a trabalhar as arquiteturas, a emigração não surge de imediato, apesar de ser uma inevitabilidade. Quando começo a olhar para o território, começo a fazer um trabalho de campo e percebo que é uma inerência: a emigração está completamente conectada com a arquitetura nestes espaços, sobretudo a norte do Rio Tejo, no centro de Portugal, e vice versa. A arquitetura vernacular ou neo-vernacular está completamenteintricadacom a emigração. Portanto, era um compromisso inevitável e, digamos assim, muito bem vindo.

 

OEm – No seu livro fala sobre três tipos habitacionais da arquitetura popular em Portugal, sendo que um deles é a Casa do emigrante. Nós queremos saber se nos pode falar um bocadinho sobre as razões que a levaram a escolher esta tipologia?

AS –
Portanto, a tipologia da Casa do emigrante, como tinha referido, ao longo de um século de trabalho sobre arquiteturas de pessoas anónimas, sobretudo de casas que são ícones biográficos, individuais, coletivos e de transformação das paisagens, porque são de facto, digamos metáforas de negociação, de tensões, de transformação e de produção de lugares, em que pessoas anónimas, são atores privilegiados nesses processos de transformação – as casas de emigrantes – que a partir de um dado momento ocuparam um lugar muito marcante, muito visível e também contestado, digamos assim, nessas mesmas paisagens e portanto era completamente impossível abordar as arquiteturas populares, as casas dos campos, sem falar dessas casas de emigrantes. Houve ali um período em que eu senti algum vazio nos estudos que fui conhecendo sobre as casas de emigrantes, que são muitos e muito bons, feitos por investigadores das mais diversas áreas, mas que era aquele período de transição entre os anos 60, sensivelmente, ou finais de 50 e os anos 70, que são as tais casas que espelham ou refletem um pouco aquela transição da dependência dos campos para os processos do operariado, da industrialização, das migrações internas, da emigração e essa fase, digamos assim, do limbo entre as casas tradicionais, dependência dos campos e as casas de emigrantes, definem aqui uma passagem muito importante, e as casas dos emigrantes pela representatividade em número, e naquilo que significaram para as reconfigurações das paisagens dos campos, foi e é um tema fascinante.

OEm – Na reconfiguração do panorama arquitetónico das casas pós rurais, destacou também três períodos temporais. Poderia falar-nos um pouco mais sobre esses períodos?

AS –
Sim. De uma forma sintética estamos a falar do período entre 1900 e 2015, que foi quando eu terminei efetivamente o trabalho de campo e a investigação que depois derivou na redação da tese. Ressalvando que há sempre fronteiras, ou períodos que são um pouco artificiais porque eu tinha que marcar períodos de transição, o primeiro período aborda um pouco as casas das vilas, as casas dos proprietários agrícolas, e sobretudo as casas dos pequenos trabalhadores rurais e dos agricultores, e essas casas refletem precisamente essa relação da casa como um instrumento de produção agrícola. São casas que refletem muito um período de estabilidade, de continuidade, de renovação, de ciclos que se repetem assentes numa trilogia, que é essa trilogia da relação entre família, casa e campo e, portanto, toda essa interdependência está muito focada no primeiro período. Depois há algumas análises também sobre as relações de genealogia, sobre as relações de género que são tão importantes abordar todos os dias, das relações de vizinhança, das estratégias de cooperação, das técnicas, dos materiais de construção. Um segunda etapa, que é então a etapa da casa do emigrante que já falei um pouco atrás estava, eu pelo menos senti-a pouco refletido, ali anos 50, 60, até inícios 70. É um período tímido de afirmação dessas casas, de algumas casas de emigrantes, que se confundem com casas de residentes, em que já eram obrigatórios processos de licenciamento, a burocracia aumenta nesses mesmos processos de construção, os materiais tornam-se mais industriais, as técnicas menos artesanais, mas o nível de conforto aumenta e depois, ainda nesse segundo momento, temos então essa expansão muito exuberante da “casa do emigrante”, que é uma casa que reflete toda esta importação de referências, de estilos, de técnicas, sobretudo de técnicas construtivas muito comuns em França, que já transitam lá do espaço rural, curiosamente para as periferias urbanas, e essas casas de emigrantes são trazidas por emigrantes, mas muito negociadas com outros atores. Portanto, elas são períodos de negociação, não só pelos emigrantes, mas pelos próprios desenhadores, engenheiros técnicos, e outros atores que acabam por negociar aqueles resultados. E são casas que projetam a imagem e o desejo que o próprio emigrante tem de contribuir para um progresso da aldeia de onde saiu, em que a aldeia tinha muitas fragilidades, e estava associada à miséria, mas também a um desejo de afirmação pessoal de sucesso. E depois o último período, o terceiro, que aborda então duas dimensões que se complementam porque, nos anos 90, sensivelmente – noutros países um pouco mais cedo, como em França, depende dos contextos, tudo isto é muito contextual –, há uma retoma ou uma valorização da casa, nomeadamente, em termos de legislação, de convenções daquele que é o património cultural associado à dimensão popular. É um reativar da valorização ou da emblematização da arquitetura neo vernacular sobre novos primados aliados à estética, ao conforto e aí nós encontramos dois movimentos: por um lado aquilo que é a recuperação das antigas casas rurais, dos avós, então sobre esses novos primados de conforto e de estética; por outro lado a construção das novas casas de residentes e de emigrantes também com as cornijas, com os alpendres, com os beirados, com as cantarias, que pretendem cortar definitivamente com aquela imagem que foi uma imagem tão criticada, digamos assim, pelas elites, também da casa do emigrante.

OEm – No terceiro capítulo fala sobre a paisagem social e arquitetónica em Ourém, nomeadamente na transformação de casas dos trabalhadores rurais, como já nos falou um bocadinho para as casas dos emigrantes. Nós gostaríamos só de saber se nos pode falar do impacto que estas alterações possam ter tido a nível social mas também a nível da arquitetura da região.

AS –
Isso é uma pergunta muito interessante e que merece um largo debate. No imediato, o impacto foi, pelo menos pelas entrevistas e por aquilo que eu fui acompanhando, muito positivo porque estávamos a falar da imagem do progresso, estamos a falar de uma imagem de modernidade e de transformação e de rutura com aquilo que eram os campos como uma dependência muito precária. Numa segunda fase, a partir de anos 80, finais 70, 80 e 90, com base nessa discussão generalizada, quer propelada, quer pela academia, quer pela imprensa, pelas vozes autorizadas digamos assim, torna-se generalizada a crítica, a contestação a essas casas de emigrantes, não é? Então essa contestação, de certa forma, ainda não se esbateu completamente, continua a perdurar. É claro que não poderemos remeter só para essas casas aquilo que são as dissonâncias, digamos assim, arquitetónicas que encontramos nestes espaços. Há muitos outros fatores que estão associados a essas dissonâncias. O que eu quero referir é que não poderemos ver apenas pela parte negativa, mas pelos contributos efetivos que essas casas também representam como um tempo de mudança e de transição, e é isso mesmo. Teremos que ter aqui uma visão muito mais abrangente e muito mais refletida sobre a questão do impacto que trouxeram e não apenas numa direção.

OEm – Neste mesmo capítulo apresenta uma tabela com as diferentes regiões e as diferentes características ao longo de cinco anos. De 68 a 73 que apresenta as características das primeiras casas, que analisou em 68, e depois apresenta da última, que é em 73. É interessante ver que as características variam ao longo dos anos, e variam de região para região. Há alguma razão subjacente a essa alteração? é da região? é do espaço temporal? é do destino do emigrante? sendo que no seu livro apresenta maioritariamente a emigração para França presumo que o destino não seja a razão mais importante. Se nos pudesse falar um bocadinho das razões...

AS –
Sim, como eu tinha referido à pouco, nesse período eu senti uma necessidade, por outros vazios de estudos, de aprofundar um pouco e foi também um período em que dediquei ainda mais atenção às consultas de processos de construção e de processos de licenciamento. Foram muitos, centenas, os processos que consultei, que olhei e sobretudo esse período porque sentia que era um período onde eu não encontrava muitas outras referências em estudos e portanto, parecia-me que era ali um período em que eu própria não estava a conseguir entender como é que se transitava, como é que foi essa transição de um período de construção mais artesanal, mais centrada nas casas de um piso, a não ser as dos agricultores, casas com determinadas características, para uma nova etapa, que era uma etapa de transição, aliás, o que vamos encontrando ao longo deste livro são etapas de transição sucessivas, não é? E então eu quis de facto ter um olhar um pouco mais detalhado para perceber como é que esse limbo, porque eu entendo que foi ali um período limbo, se deu para transitar para a outra fase. E quando nós falamos desse período, estamos a falar não só de casas de emigrantes, mas muito de casas de residentes, porque estamos a falar de uma transformação generalizada que tocou praticamente todas as pessoas que estavam a construir nesse período, fossem residentes presentes ou passadas.

OEm – Muito obrigada. Acha que se pode dizer que existe uma absorção da cultura francesa que se transporta depois para a parte arquitetónica das casas dos emigrantes? Visto que a emigração no seu estudo é maioritariamente francesa achámos interessante perguntar se verificou alguma dessa cultura nestas casas.

AS –
Sim. O trabalho de campo que foi feito, primeiro em Portugal, muito desse multi-situado sobretudo na alta estremadura, e depois em França na região de Val de Marne, levou a esse paralelo. Quando li alguma literatura sobre a forma como essas casas chegaram à periferia de Paris, aquelas casas, e que percebo que também há, de certa forma uma própria transferência, ainda que parcial, de algumas características construtivas e arquitetónicas da zona de campanha, não é, do campo em França para as periferias, logo aí já há algum transporte, digamos assim. De França para esta região, há claramente uma importação, chamemos-lhe assim, de referentes identitários, mas que são sobretudo portugueses que sentem necessidade de absorver, por sua vez, aquilo que eram as suas imagens idealizadas de progresso: das casas, dos modos de habitar, dos modos de construir, dos usos ligados muito ao conforto, mas também ao consumo porque isto, depois em nada está dissociado daquilo que era o movimento de consumo, não é, e que as casas que são as referências, as etnografias, que são transportadas de França para esta região de Portugal, trazem consigo não só as mansardas, as coberturas inclinadas, as portadas largas, mas também uma série de hábitos ligados à forma de viver as casas, à forma também de as apropriar e à forma de as habitar, nomeadamente em termos de limpeza, as questões de higiene, as questões de consumo, as questões de como é que as refeições eram partilhadas e os alimentos que estavam nas refeições. Portanto como eu estava a dizer, as casas são etnografias das nossas biografias, não é, e, portanto, a transferência que existir efetivamente traz agregada não só elemento arquitetónico, mas também uma imaterialidade que lhe está associada, sim.

OEm – Obrigada. Sem ser casos de emigrantes para França, estudou algumas casas de emigrantes portugueses que tenham ido para outros países? Caso se tenha verificado, conseguiu ver na expressão arquitetónica, essas diferenças de escolha do pais de destino ou foi só…

AS –
Bem, então, como eu já estava a trabalhar 100 anos, fiquei mesmo pelas casas de pessoas cujo destino era França e concretamente essa região. No entanto, ao longo do trabalho de campo e também de alguma literatura que fui consultando, houve também alguns interesses claro, por outras casas de outros destinos, nomeadamente o Brasil, também já muito estudado, e aí sim, notamos aqui algumas diferenças, que eu agora não vou detalhar, mas notamos algumas diferenças. Gostaria de realçar, no entanto, que era um pouco complicado também estar a entrar por esse caminho porque a questão da casa do emigrante, e quando nós falamos, isto no fundo é uma imagem que nós criamos, não é, para um rótulo, mas nós depois vamos encontrar muitos residentes que se vão inspirar naquilo que é a casa do emigrante e que nesses períodos, inclusivamente dos anos 70, anos 80, muitos dos projetistas na maior parte eram desenhadores, e depois os engenheiros técnicos que assinavam esses projetos, pelo menos do que eu consultei, replicavam os mesmos projetos para residentes e não residentes. Daí esta questão de quando nós falamos da casa do emigrante é de uma complexidade em termos de propriedade. Mas, casos muito pontuais, que não se pode fazer disto uma verdade absoluta, porque não está confirmada. Por exemplo, vi casas de emigrantes do Canadá e da Austrália que não tinham aquelas coberturas tão inclinadas, mas com isto não quer dizer que seja uma distinção, porque eu também não tenho bases para o fundamentar.

OEm – Num dos pontos do seu livro fala sobre o papel da noiva e diz que o papel da noiva acaba por ser um papel muito indireto no processo de construção da casa. Pessoalmente, achei um ponto muito, muito interessante. Para além de não ser uma coisa muito estudada e muito abordada, é interessante no sentido em que, para além ser a noiva que está cá, enquanto o noivo ainda está lá, porque ela só vai para lá depois do casamento, todo o papel dela, ser um papel muito de aceitação face ao que o noivo quer e ao que o projetista diz que deve ser e eu gostava de saber se nos podia falar um bocadinho mais sobre isto.

AS –
Então, vamosver. Nós temos que recuar um pouco, e temos que nos posicionar antes de mais naquilo que é a construção da casa do trabalhador agrícola, em que a mulher aí de facto tem um papel muito discreto, para não dizer em muitos casos omisso, naquilo que são os processos de decisão, do tipo de construção da casa. Portanto, no fundo esse processo é muito negociado entre noivo e pais (homens) e pedreiro, que eu gostaria também aqui de realçar o papel do pedreiro nestes processos que se vai acompanhando e que de facto é um papel tão invisível e tão indispensável em todos estes processos e que valeria a pena de facto, não deixar de olhar para ele como um suporte mesmo em processos de decisão, e então nesse período. A mulher de facto, estava muito remetida para aquilo que era a escolha do enxoval, digamos assim, o trabalho, o trabalho no dia fora, alguns ganhos para o enxoval, e depois ela iria assumir um papel central em toda a gestão da casa, familiar, na relação dos campos em que ela, de certa forma, assumiria aqui o pilar... O papel de gestora, inclusivamente, quando eles emigravam, não é? Quando eles emigravam é que ela fazia toda esta gestão da componente familiar e da gestão da casa. Nos processos de emigração, quando estamos a falar já do emigrante que vem, no início, ela também tinha este papel mais confinado, não tem voto porque ela não percebe nada disto de construção, isto é coisa de homem, isto é um papel de homem. Papel da mulher é, quanto muito, participar na escolha dos móveis e depois enfeitar a casa e decorá-la e pô-la a funcionar, digamos assim. Nessa relação de género é interessante irmos percebendo como é que a mulher se vai emancipando sobre diversas formas e vai ganhando aqui também uma participação muito mais ativa, muito mais decisiva também, nos processos de escolha, e espero que isto nunca pare.

 

OEm – Neste mesmo processo, muito burocrático para um emigrante conseguir as licenças para construir as casas e que que muitos deles até utilizavam as moradas dos familiares que residiam em Portugal. A minha questão neste sentido era perceber se essa utilização da morada dos familiares portugueses se prendia apenas à questão burocrática ou se também estaria de alguma forma relacionada com a questão identitária, no sentido de, eles não são emigrantes, eles estão cá, são portugueses, a casa deles primária vai ser aquela, isto é só um espaço de tempo muito curto por isso eles não se querem identificar enquanto emigrantes. Não sei se foi algum dos pontos que viu ou não, ou se é, ou se verificou que é apenas uma coisa burocrática.

AS –
É essencialmente uma burocracia, porque teria que se dar sempre a morada, não é? Teria que se dar sempre. Teríamos aqui sempre um papel de interlocutor, ou seja, com a entrada dos processos de licenciamento para a construção, para a habitação, etc, era muito importante e era fundamental haver então um rosto que trataria de todos esses processos administrativos, nomeadamente com as câmaras municipais, e eles, os emigrantes, aqui entendiam e, de certa forma, negociavam ou delegavam com um familiar direto, na maior parte dos casos o pai ou os irmãos, toda essa gestão mais administrativa porque qualquer processo depois de assinatura, qualquer processo de decisão, facilitava-lhes muito a vida, por isso sim, era uma coisa sobreturdo borucrática.

 

OEm – O terceiro espaço temporal que abordou estava muito relacionado com a crise de 2008. Podia falar um bocadinho sobre a influência da crise nos reflexos das casas dos emigrantes nas duas regiões que estuda?

AS –
Bem, esse tema foi uma agradável surpresa, já na parte final da investigação, e que eu gostaria de aprofundar. De facto, é referido, estamos a falar da crise, ali a partir de 2008, mas a verdade é que nós já poderemos recuar, há inclusivamente investigadores que demonstram que já vem antes, detrás. E eu de facto, no trabalho de campo que fui fazendo, percebi que há ali movimentos migratórios, novos emigrantes e reemigrantes a partir de 2004, 2005 e que continuam. O que é que acontece, estamos a falar num território, aqui concretamente de Ourém e a Alta Estremadura, há ali vários concelhos de uma forte componente económica ligada à questão da construção, não é? Então, com a crise e com tudo o que daí advém, há uma grande retração na construção, há muita insolvência de construtores, muitos deles da classe média e de operários da construção. Então há esse movimento de emigração ou reemigração na maior parte daquelas situações que eu acompanhei, para os mesmos destinos e para as mesmas profissões. O que é que nós vamos encontrar aqui? Depois, com as entrevistas que eu fiz a emigrantes já de longa data e outros novos emigrantes na região da periferia de Paris, é que essas pessoas já não querem regressar, ou tem muita retração sobre o futuro do País e portanto o que elas pensam é, vou deixar de investir numa casa em Portugal, eu quero é investir no meu futuro cá em França, juntamente com os meus filhos, com os meus netos, cuja vida se vai prolongar aqui, não obstante eu possa fazer aqui também uma mobilidade sazonal, mas o meu futuro será aqui. E qual foi a minha surpresa quando começo a perceber que há muitas casas, muitas ou, não é pela quantidade, mas há uma representação efetiva de casas de portugueses, alguns emigrados, uns já há bastante tempo, outros mais recentemente, com características muito ligadas às novas casas com as cornijas, com este reaportuguesamento, digamos assim, que também estava acontecer aqui, nas aldeias em Portugal. Começaram a surgir, nos anos 90 e 2000, em oposição, digamos assim, às casas de emigrantes. E, portanto, aquilo que nós encontramos é um transporte de alguns fragmentos, digamos assim, de portugalidade, daquele país e daquela aldeia onde estes emigrantes continuam a viver de certa forma virtualmente para os sítios onde eles vivem realmente. E esse, eu acho, é um tema fascinante, que não sei como é que vai ser, no futuro, mas depois de uma importação, encontramos aqui uma exportação com novos formatos, novos modelos, e muitas vezes com grande sincretismo porque também absorvem influências daquilo que são referências arquitetónicas de França, com referências que trazem, e sobretudo, para além desse transporte, que é encomendado muitas vezes a jovens arquitetos portugueses, muitos deles luso-franceses. É também feita a construção pelos operários que transportam os emigrantes, ou os novos emigrantes portugueses, que transportam as técnicas e os saberes da construção da cornija, do beirado, etc, e pelos materiais, que eles dizem que têm muita qualidade, que são transportados pelas transportadoras de Portugal e das aldeias de origem, e das freguesias de origem para os sítios de destino.

 

OEm – Tem alguma sugestão de linhas de pesquisa futuras para esta temática?

AS –
Eu gostaria de continuar com esta. Digamos que eu estou quase em paz com todo este processo até agora, mas gostaria muito de poder acompanhar o que vai acontecer daqui para a frente, até porque as transformações e as reconfigurações estão a acontecer a ritmos cada vez mais velozes e gostaria de poder acompanhar esta nova fase. Por um lado, nesta relação entre a emigração e os novos processos, e não só processos, atores, porque interessa-me sobretudo os atores anónimos. Estes atores ligados à construção que são levados por esta, no fundo eles são os verdadeiros atores do transnacionalismo, também de uma das expressões do transnacionalismo, não é? E, ao mesmo tempo, também as questões da emblematização, das arquiteturas rurais, e isto já a propósito do despovoamento dos campos que também não posso deixar de registar o que vai acontecer. Quando falamos muito em património, em reabilitação, também devemos falar da perda do saber das técnicas, e dos materiais de construção, que não tiveram continuação, ou continuidade dessa transmissão de saber por parte de muitos atores que os trabalhavam empiricamente nos anos 60 e 70 e são duas áreas, digamos assim, que me continuam a apaixonar.

 

OEm – Gostaria de acrescentar mais alguma informação?

AS –
Eu acho que não. Obrigada, muito obrigada.

 

OEm – Muito obrigada por ter vindo e por tanta informação tão interessante.    

 

Como citar  Moura Veiga, Carlota (2019), "A expressão da emigração na arquitetura em Portugal: Entrevista a Ana Saraiva", Observatório da Emigração, 23 de Maio de 2019. http://observatorioemigracao.pt/np4/7316.html

 

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