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Novos escravos da Holanda
2007-12-20
A portuguesa Céu Neves ganhou o Prêmio de Jornalismo europeu 2007 com uma reportagem sobre discriminação dos imigrantes portugueses e poloneses na Holanda

Céu Neves, do Diário de Notícias candidatou-se a uma das vagas oferecidas por uma agência holandesa de empregos temporários que tem filial em Portugal. Juntamente com outros portugueses que buscam trabalho no exterior, a jornalista aceitou o trabalho e imigrou para a Holanda para descrever a situação.

Salários baixos, promessas falsas, longas jornadas péssimas condições de trabalho são algumas das situações enfrentadas por ela e pelos imigrantes portugueses e outros, que buscam trabalho na Holanda.
De acordo com a jornalista, o artigo dela é a contribuição portuguesa para "o novo tipo de escravidão na Europa". Céu Neves afirma que o único jeito de compreender a situação era viajar para a Holanda como uma imigrante, como qualquer outro trabalhador temporário.

Para ela, seu artigo é também uma alerta para os países membros da União Européia, em particular Portugal e Holanda, sobre as péssimas condições que os imigrantes se submetem devido à escassez de alternativas no país de origem.

O Prêmio de Jornalismo da imprensa européia teve nesse ano direitos iguais como tema, cujo lema era: diferenças sim, discriminação não.

Leia abaixo a primeira parte do artigo de Céu Neves, publicado originalmente no Diário de Notícias:

Fui emigrante na Holanda. É pior do que imaginava

Os portugueses e os polacos são os novos escravos da Holanda. Há também turcos, mas estes se protegem mais. A classificação só pode parecer excessiva a quem não viveu nas condições destes emigrantes. O problema não é a dureza do trabalho - às vezes mais de dez horas em pé num espaço de 50 cm de uma fábrica e de madrugada ou numa estufa com um calor insuportável, estar sempre a ouvir snel, snel (rápido), não poder descansar ou ir ao banheiro fora das pausas e ter um chefe com os olhos fixos no que fazemos. O problema é saber que esse trabalho não está garantido. É estar disponível 24 horas por dia, seis dias por semana. É dormir com o celular à cabeceira e acordar com o sobressalto de que nesse dia fica em casa. E se tiver a sorte de ir trabalhar, pode ser apenas por quatro/quatro horas e meia/cinco horas. E também pode acontecer estar de folga e ser chamado porque há mais trabalho que o previsto. É levantar-se às quatro da manhã para estar pronto às 04.45 para o carro da empresa o levar ao local de trabalho e o condutor não aparecer. O problema é estar permanentemente a mudar de casa. É nunca saber quem irá dormir no seu quarto, no sofá ou, até, na sua cama. É não ter privacidade. Em resumo: não ter vida própria.

"Fico em pânico cada vez que não vou trabalhar", dizia o Mário (um dos portugueses que encontrei). No início, pareceu-me exagero. Depois, percebi o significado.

Esta minha experiência como emigrante começou em Abril. Procurei anúncios na imprensa e encontrei propostas de emprego em praticamente todos os continentes. Muitos pediam expressamente homens e acabei por optar pela InterActief, agência holandesa de trabalho temporário, com filiais em Portugal.

Fui a uma entrevista na Cova da Piedade. Não quiseram saber a idade, habilitações ou experiência profissional. Perguntaram se consumia drogas ou álcool e exigiram o atestado médico e o registo criminal. Disse que pretendia trabalhar numa estufa ou numa fábrica e indicaram-me Roterdã. A partida ficou agendada para 16 de Maio. Trinta e quatro horas de viagem de autocarro.

Chegada
Quarta-feira, dia 17 de Maio, 17.15 locais. Dezesseis portugueses, com origens de norte a sul do País, caem de armas e bagagem no centro de Roterdã, junto à estação central. Penso que outros dez terão seguido para Amsterdã. Está um frio de rachar. O condutor que nos leva aos escritórios da empresa chega uma hora depois. O carro tem apenas quatro lugares e são precisas várias viagens.

"Isto está mau, há aí pessoal que veio há 15 dias e ainda não está a trabalhar", diz o condutor, português. É o primeiro contato com a realidade. Todos esperamos que conosco seja diferente!

Entramos na empresa pelas traseiras. Depositamos as bagagens. Muita. Desde roupa pessoal e de cama a panelas e comida. Há pessoas que perambulam pelas instalações com ar carregado e olhos tristes. Perguntam por trabalho. Protestam por contas salariais estarem mal feitas. Outros dizem-nos para ter calma e garantem: "À meia-noite de quarta-feira tem o dinheiro no banco". Só não acrescentaram que pode ser muito pouco.

Há quem se desloque à empresa ao fim da quarta-feira só para ver quem chega. É o dia dos portugueses. Os polacos chegam à segunda-feira. Calculo que emigrem uma média de 50/60 por semana das duas nacionalidades. A InterActief é uma das maiores agências de trabalho temporário na Holanda, cerca de 1400 trabalhadores, dados não confirmados pela administração (não responderam às questões do DN). A maior parte fica em Roterdã, para trabalhar em estufas de legumes ou flores e fábricas de embalagens. Os restantes vão trabalhar "nos hotéis de luxo" de Amsterdã.

"Então, o Zé, já foi ao hospital?", perguntam a uma mulher com mais de 40 anos, que percebo depois estar na Holanda com o marido e um filho adulto. Tem as roupas sujas de verde. Trabalha numa estufa de tomate, das 06.00 às 17.00. O marido cortou-se na estufa, um corte sério: "Não quiseram ir com ele ao hospital. O seguro não dá e eles não querem pagar", responde a mulher. Acabou por ser levado por outros portugueses.

Éramos quatro casais, um deles já na casa dos 40 anos, mais quatro jovens, um homem entre os 30 e os 40, outros dois homens e eu com mais de 40 anos. Sentamo-nos a uma mesa.

Uma funcionária explica-nos em inglês o que vamos fazer. Só eu e outros dois rapazes que já tinham estado a trabalhar em Inglaterra conseguimos acompanhar a conversa. O que demonstra o baixo nível de qualificação de todo o grupo.

Assinamos um contrato que não fazemos a mínima idéia do que diz. Está em holandês e não nos dão uma cópia. Dizem-nos que é igual ao que assinamos em Portugal, cinco cópias intituladas "Condições gerais". Basta comparar o tamanho das frases e os números indicados para perceber que não é a mesma coisa.

A funcionária da InterActief faz a distribuição das camas e a marcação do dia para fazer o Sofi Nummer, número social e fiscal sem o qual não podemos trabalhar. Vou só na segunda-feira e tenho sorte. Há quem vá na quarta. Saímos com as bagagens e os kits. Um dos passageiros do meu carro recebe um telefonema. Acho a conversa hilariante depois de tudo o que tinha visto. "Eh pá, isto é bestial. Olha, estou a ver uma coffee shop [é permitido fumar haxixe]. É demais! Tens de vir para cá!"

Espera
Chegamos a uma quarta-feira a Roterdão e no dia seguinte (quinta-feira da Espiga) é feriado. Os serviços públicos fazem ponte na sexta-feira. Em resumo, a primeira semana de trabalho está perdida. Ou seja, não iremos receber nos primeiros oito dias, como nos avisaram em Portugal, mas também não iremos receber nos segundos. E tinham-nos dito que bastava levar cem euros para os primeiros tempos. Quem levou só esta quantia, teve de pedir o dobro emprestado. Ou passou fome.

"Vai ficar com a Palmira. Ela trabalha no turno da noite e você vai para o de dia. Não se cruzam e estão mais à vontade", disse a funcionária quando me entregou a chave da casa. E acrescentou: "Está a Isabel na sua cama, teve um problema".

O condutor me deixou à porta do prédio, passava das nove. Abri a porta e subi as escadas de madeira sem iluminação. Cheirava mal. Temi o pior. Felizmente, enganei-me. O apartamento estava limpo.

"Tens sorte. Na casa da Adelaide são oito pessoas e só com uma cozinha e uma casa de banho. Pedi-lhes uma pessoa decente. Tiveram aqui duas alemãs a dormir na sala e uma delas estava sempre pedrada. E só dizia: "Don' touch me, don't touch me (não me toque)", diz-me a Palmira quando chega do trabalho às 06.30. Esta passou a ser a minha hora de levantar na primeira semana. Traz a Adelaide, que mora no prédio ao lado, para fazer o jantar. Esta é a principal refeição do dia das duas. Numa dessas manhãs faz bacalhau com todos. Um dia a Palmira fez uma sopa de legumes. Maravilhosa. A melhor coisa que me aconteceu por esses dias.

Corri Roterdã e fiz entrevistas em Haia e em Amsterdã e só nestas cidades revelei a minha profissão. As minhas companheiras não percebiam toda esta movimentação e como é que uma mulher com filhos, o marido empregado e sem dívidas tinha emigrado!

Radio Nederland Wereldomroep, aqui, acedido em 27 de Julho de 2009.

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