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Objetos inesperados podem contar histórias importantes [sobre o exílio]
Sónia Ferreira
Sónia Ferreira é professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA-FCSH). Como investigadora integra o Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA NOVA FCSH/IN2PAST), onde co-coordena o grupo de investigação Circulação e Produção de Lugares, e a Unité de Recherche Migrations et Société, da Universidade de Paris-Cité, onde co-coordena o grupo de trabalho Migrations dans les Mondes Lusophones: Identités, Altérités et Circulations. Entre 2019 e 2022 coordenou, o projeto europeu #ECOS. Exílios, Contrariar o Silêncio: Memórias, Objetos e Narrativas de Tempos Incertos.

 

Entrevista realizada via Zoom, a 16 de abril de 2024, por Liliana Azevedo.
Também disponível em PDF na série OEm Conversations With.

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) – Começas a trabalhar com questões relacionadas com a migração portuguesa durante o pós-doutoramento, ou seja, a partir de 2009. Nessa altura, estudas algumas produções mediáticas relacionadas com a emigração para o Canadá, Brasil e França, país no qual viveste alguns anos. Creio que é nessa altura que surge o teu interesse pelo tema do exílio político. Podes falar um bocadinho sobre isso?

Sónia Ferreira (à frente SF) – Eu, de facto, comecei a interessar-me pelas questões da migração portuguesa depois do doutoramento, precisamente porque na altura comecei a trabalhar sobre as questões da comunicação e dos média. No início da minha carreira, dei aulas durante uns anos na Escola Superior de Comunicação Social, e também por causa das aulas que dava lá, comecei a interessar-me pela relação entre a antropologia, a comunicação e os média. Como partia da antropologia, interessava-me bastante o que era produzido sobre a questão dos média étnicos, os ethnic minority media, embora os autores da altura trabalhassem sempre sobre contextos muito diferentes daqueles que eu conhecia. Na altura, eu já era investigadora na Universidade Nova de Lisboa, estava num centro de investigação, o CEEP, Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, e também num outro centro de investigação, o CEMME, Centro de Estudos para as Migrações e as Minorias Étnicas, e comecei a discutir com os colegas de lá como é que se poderia olhar para esta temática, não só em termos teóricos, mas também de aplicação a um contexto empírico específico. Depois, já não me recordo exatamente como, fomos parar à migração portuguesa, por nos ser mais próximo, por termos alguma curiosidade em ver se haveria também estes ethnic minority media na emigração portuguesa. E, na altura, descobrimos o programa de televisão Gente da Nossa feito no Canadá por migrantes portugueses. E então trabalhei sobre isso, em pós-doutoramento, num projeto coordenado pela Filomena Silvano e financiado pela FCT [“Feeling the pulse of the community: Identity politics and narratives of a Portuguese migrant community in Canada”]. Depois desse projeto acabar, fiquei com vontade de continuar a trabalhar sobre essas temáticas. Esse primeiro projeto foi só sobre o Canadá e, posteriormente, comecei a pensar num projeto que alargasse, no fundo, esse tipo de análise empírica e expandisse em termos comparativos. Decidi então trabalhar, na continuidade do Canadá, acrescentando a França e o Brasil como terrenos etnográficos. França, por ser também um país bastante expressivo, em termos da presença portuguesa, e por ter um modelo de integração da migração diferente do Canadá, quase antagónico até. E o Brasil para ter um contexto lusófono, já que a minha questão era em grande medida também a da língua e de como os meios de comunicação social, ao serem produzidos em português, têm a língua de produção como marcador da etnicidade. E então pensei: e como é que isso se coloca num país lusófono? Como é que a questão da língua se coloca para a migração portuguesa no Brasil? Com este projeto obtive uma bolsa da FCT e fui para França. Em França, andava a estudar os meios de comunicações social portugueses quando conheci o Vasco Martins, que estava ligado à associação Memória Viva. O Vasco tinha feito há uns anos uma exposição sobre jornais da migração portuguesa, sobretudo jornais militantes. Ele tinha um grande espólio que, entretanto, já foi doado à Bibliothèque de Documentation Internationale Contemporaine (BDIC), que hoje é a La Contemporaine, em Nanterre. Eu fiz uma entrevista com o Vasco, e foi aí que se me abriu a porta, vamos dizer assim, para este lado mais político da migração, para o exílio, etc., que eu não estava a trabalhar tanto. Achei muito interessante, e comecei à procura de outras pessoas que tivessem estado ligadas a este tipo de imprensa, quer no sentido mais tradicional, como os jornais, quer com boletins e outras publicações que, às vezes, têm uma existência muito efémera, dois ou três números, por exemplo, mas que são muito importantes para compreender este universo. Acabava por ser, por um lado, um bocadinho o contraponto do que eu já tinha e, por outro, também permitia completar, vamos dizer assim, os conteúdos sobre a experiência mais visível da migração económica em França. Dizendo isto para simplificar, porque esta divisão entre migração económica e política é uma grande discussão e eu, na realidade, até discordo com estes binómios. Mas foi a partir daí que eu pensei “eu também quero olhar para isto”, até porque a história do exílio português em França está muito marcada por grandes personalidades da vida política portuguesa contemporânea, do pós-25 de abril, e eu fiquei com vontade de estudar a história mais quotidiana de quem ficou lá, de quem não ficou na história como ícone, um lado menos registado. De modo que, quando vinha a Portugal, procurava também fazer entrevistas com ex-exilados em França. E assim fui conhecendo mais pessoas que tinham estado exiladas noutros países. Estas pessoas com quem eu trabalhei mais de perto estavam relativamente unidas por uma experiência comum, a de terem sido militantes numa organização política, que estava associada a uma rede de desertores na Europa e também à publicação de alguns órgãos de imprensa, nomeadamente o jornal O Alarme!…, pelo qual eu me interessei particularmente e que fui estudando com eles. Depois, no fundo, acabei por ir acompanhando esta vontade que tinham de se organizarem, porque quando os conheci, estavam a organizar-se em torno daquilo que mais tarde veio ser a Associação de Exilados Políticos Portugueses. Entretanto, também voltei para Portugal, ao fim de quase três anos, e fui mantendo sempre estes contactos. Convidavam-me para participar em muitas atividades, e em paralelo eu continuava com o trabalho sobre os arquivos e as suas memórias. Participava nas atividades para as quais me convidavam, nomeadamente quando lançaram o primeiro e o segundo volume do livro Exílios, que é um livro de testemunhos sobre exilados políticos na Europa que a Associação (AEP) organizou e publicou. Os momentos dos lançamentos dos livros, quer em França, quer em vários sítios em Portugal, acabavam por ser momentos muito interessantes do ponto de vista etnográfico porque podia observar as interações, as reações do público, as reações às nossas intervenções e aos testemunhos apresentados. E fomos criando assim, uma espécie de equipa informal de trabalho. Até que surgiu o projeto.

 

OEm – É muito interessante ouvir-te falar deste percurso, de ver como as coisas se encaixam e como surgem de forma quase orgânica. Esta nossa entrevista está centrada no projeto “#Ecos. Exílios, contrariar o silencio: memórias, objetos e narrativas de tempos incertos que nasce”, precisamente, no seguimento deste teu trabalho, do qual acabas de falar. Gostava de te perguntar como tomou corpo este projeto e como se construiu a parceria, que envolveu a Universidade de Copenhaga, a URMIS, a associação Memória Viva/Mémoire Vive, a Associação de Exilados Políticos Portugueses (AEP61-74) e o grupo de teatro Casa da Esquina.

SF – O projeto, na realidade, nasceu de forma muito orgânica. Eu quase só trabalhei com pessoas que já conhecia, tirando uma ou outra exceção. O projeto nasceu desta rede informal que já existia. Ou seja, quando eu pensei em fazer o projeto, já estava a pensar nestas pessoas. Porque nós estamos sempre à procura de financiamento para poder trabalhar, não é? E quando andava a pesquisar financiamentos, vi uma linha de financiamento da Comissão Europeia, que se chama Europa para os Cidadãos, e percebi que era uma linha que tinha alguma plasticidade para um trabalho que não era apenas estritamente académico e que podia envolver diversos tipos de parcerias. Quando nós pensamos, por exemplo, num projeto FCT, à escala nacional, é muito difícil. Eu tinha concorrido a um FCT anteriormente, precisamente para trabalhar em França sobre estas temáticas da língua, da comunicação, etc., e queria ter uma equipa internacional, nomeadamente os colegas com quem trabalho em França, e isso levanta sempre muitos problemas: a maneira como eles podem entrar nos projetos, o estatuto que eles podem ter, como é que se faz em termos orçamentais… Há sempre algumas contingências à constituição de equipas internacionais, além de que estamos a falar estritamente no domínio académico. E eu achei que, neste projeto, fazia sentido trabalhar com todas estas parcerias académicas e não académicas, que na realidade já existiam. E quando vi essa linha de financiamento, pensei: olha, é isto que faz sentido, porque isto permite constituir uma equipa internacional, europeia, em que possa estar esta gente toda, com todas estas filiações. E então constitui a equipa sempre pensando neste equilíbrio entre ter uma instituição académica e uma instituição da sociedade civil, porque isso, para mim, era o que fazia sentido. Por um lado, as instituições universitárias podiam contribuir com a reflexão crítica e organizar eventos mais no âmbito académico, e, por outro lado, as associações não só são uma porta de entrada para chegarmos às pessoas, como têm uma capacidade, principalmente estas que têm um caráter mais militante – essa já era a minha experiência anterior – têm uma grande capacidade também de se organizarem, de criarem eventos em áreas e em locais fora da academia. E essa linha de financiamento procurava precisamente isso, ela andava toda em torno de trabalhar sobre as questões da memória europeia, fazendo chegar os conteúdos, os outputs, a um público mais alargado do que um público específico como, por exemplo, o académico. A ideia era chegar ao público europeu, em diversos países. E isso fazia todo o sentido porque nós queríamos trabalhar juntos, que era aliás o que já andávamos a fazer há alguns anos e por várias geografias. E, então, construímos o projeto assim, ou seja, em Portugal tínhamos o CRIA e a Associação de Exilados Políticos Portugueses, onde estava uma boa parte destas pessoas que eu fui conhecendo e com quem eu já trabalhava. Depois, por coincidência, tinha ouvido há uns tempos uma entrevista ao Ricardo Correia, que é o diretor artístico da Casa da Esquina, que levou a cena uma peça de teatro que se chamava, precisamente Exílio 61/74, e que era uma peça de teatro que recolhia testemunhos de algumas destas pessoas. Contactei o Ricardo Correia e integrámos a Casa da Esquina como parceira, porque a ideia sempre foi ter uma componente artística e também uma componente ligada ao cinema. Porque uma das pessoas com quem eu tinha trabalhado muito em França, no âmbito da associação Memória Viva, é o realizador Hugo dos Santos que, recentemente, lançou o filme As Mãos Invisíveis, sobre o exílio português em França. E, portanto, a ideia também sempre foi que o projeto tivesse esta dimensão visual. E depois, em França, claro, também fui buscar aquela que foi e ainda é a minha instituição académica de acolhimento, a URMIS, onde juntamente com a antropóloga Irène Dos Santos, faço a coordenação de um grupo de investigação sobre migrações lusófonas. E, portanto, foram integradas essa instituição universitária e a Memória Viva, que era a associação com quem eu tinha trabalhado sobre os arquivos e a memória da migração. Simultaneamente, tinha conhecido, por causa do livro Exílios, alguns dos exilados que estiveram na Dinamarca, que são também bastante ativos, e pensou-se então levar o projeto à Dinamarca se conseguíssemos um parceiro. E depois são aquelas redes académicas: tinha um colega com quem eu trabalhava num outro projeto sobre o Brasil, que é professor na Universidade de Copenhaga, perguntei se ele conhecia alguém que estivesse interessado nisto e ele pôs-me em contacto com uma colega, que é a Ana Vera, que trabalha sobre cinema, que na altura era também lá docente. E fomos estabelecendo, assim, esta parceria, sendo que lá não havia, propriamente, uma associação, mas havia ex-exilados políticos portugueses a viverem na Dinamarca que pertenciam à Associação dos Exilados Políticos Portugueses e, portanto, tínhamos a mesma componente, ou seja, universitária e testemunhal. O projeto foi construído desta forma. Eu sei que há projetos em que, muitas vezes, nestes tipos de financiamentos, os parceiros trabalham de forma autónoma, mas nós sempre quisemos pensar o projeto como único, ou seja, todos nós estávamos sempre a trabalhar, no fundo, para o mesmo. Não havia atividades, vamos dizer assim, independentes. Todas as atividades estavam entrelaçadas, em diferentes línguas e adaptadas ao local, mas não eram atividades de caráter independente, foi tudo pensado e articulado como um todo.

 

OEm – Quais eram mais precisamente os vossos objetivos neste projeto?

SF – Interessava-nos ir para além da análise de conteúdo e observar o  que é que os produtores mediáticos faziam no estúdio e na redação e para além destes, ou seja, uma “etnografia da produção” que abarcasse todo o universo social a que estes pertenciam, que reproduziam e ajudavam a circunscrever. No âmbito do “Gente da Nossa”, por exemplo, aconteciam muitas coisas, mais até do que nos outros. No conjunto, todos promoviam viagens e festas mas neste,  a partir de um determinado momento, uma boa parte dos s conteúdos transmitidos veiculam e promovem esses acontecimentos. Donde se destacam as viagens que, ancoradas naquilo que podemos chamar de “turismo da nostalgia”, adquirem cada vez mais peso. Primeiro iam só aos Açores, depois também à Madeira e, por fim também já havia viagens a Portugal continental, ao Santuário de Fátima, ao Algarve. Filmavam tudo, transmitiam nos programas e depois vendiam os dvd´s.  Isto ia ao encontro de uma coisa que eu queria muito fazer na altura, que era uma “etnografia da produção” no sentido estritamente antropológico, porque se os métodos da antropologia eram desde os anos 90 apropriados por outras áreas, como os medias studies, cultural studies, nomeadamente para as questões da análise das receções e do consumo, eu queria muito analisar a parte da produção. Achava que era uma coisa que se fazia pouco, queria fazer uma etnografia do que fica invisível quando olhamos para a parte pública dos média, para os conteúdos e olhar estes produtores também a partir do quadro analítico das migrações. Foi isso que eu fui fazer para o Canadá, com a Marta Rosales que também integrava a equipa, acompanhar os produtores, andar com as equipas na rua, no estúdio. Observar a selecção de conteúdos, as filmagens, as edições, ír às festas. Nunca fomos a uma viagem porque o financiamento não chegava para isso.

 

OEm - Muito interessante essa dinâmica. Será que podes agora explicar em que é que consistiu concretamente o projeto: quanto tempo durou, que atividades foram desenvolvidas, para que públicos, se foram envolvidos outros parceiros, quais eram os objetivos?

SF – Desde o início, os objetivos do projeto foram trabalhar a questão do exílio português na Europa para discutir questões mais amplas da contemporaneidade. Ou seja, a nossa ideia era pegar neste exemplo histórico e na história portuguesa para discutir questões que são quase intemporais, as questões do exílio, as questões do asilo político, as questões dos refugiados, as questões do acolhimento, as questões da solidariedade, as questões das fronteiras, as questões da fuga. Ou seja, vamos pegar nesta história e vamos contá-la, principalmente porque ela nem sempre é conhecida pelas gerações mais novas. E, desde o início, foi muito claro para nós que, sendo o público-alvo a sociedade em geral, havia, no fundo, dois públicos-alvo mais específicos. Um era a juventude, ou seja, nós queríamos trabalhar com o público jovem e achámos que para isso o mais fácil era trabalhar dentro do enquadramento escolar, ou seja, utilizar as escolas como um lugar de acesso aos jovens, até porque podíamos entrar pelos conteúdos dados dentro dos próprios currículos escolares e podíamos usar o espaço da escola para fazer atividades. E depois também aquilo que nós chamámos de “público europeu” ou “sociedade civil europeia”. Devido aos objetivos do financiamento, trabalhámos a memória europeia de forma transnacional. A própria linha de financiamento obriga a trabalhar do ponto de vista da Europa, ou seja, podes ter um projeto que decorra só em Portugal, mas ele tem que ter sempre um caráter europeu. E eles financiam preferencialmente projetos que tenham vários países envolvidos e, portanto, tens que dar sempre o ponto de vista transnacional. E isto encaixava que nem uma luva no nosso projeto, porque a ideia era precisamente a de contar a história deste exílio na sua dimensão europeia. E eu desde sempre defendi que este projeto conta a história de Portugal, mas conta também a história de França e a história da Dinamarca, além da história da Holanda, do Luxemburgo, da Bélgica, da Suíça, etc. E, portanto, quando nós contávamos esta história num outro país que não Portugal, por exemplo, aos alunos em França, eu dizia: venho contar-vos uma história sobre França. Apesar de ser uma história de portugueses que vêm de Portugal, isto é, sobre a história de França. E é sobre a história da França que acolheu estas pessoas, como é que as acolheu, de que forma é que estas pessoas em França se politizaram, se integraram no movimento associativo, interagiram com outros movimentos transnacionais, como, por exemplo, os objetores de consciência, da Guerra do Vietname, e por aí fora. E, portanto, isto não é uma história paroquial de uma coisa que aconteceu em Portugal, isto é, sobre a história da França e, a um nível acima, é sobre a história da Europa. A Europa das ditaduras e das democracias. Nós discutíamos muito esta questão das cidadanias desiguais e como é que estas pessoas que vêm de uma ditadura chegam a países democráticos e é toda uma nova aprendizagem da cidadania, da relação com a própria ideia de democracia. E, portanto, o projeto era também sobre a Europa das ditaduras e das democracias, da sua relação com os movimentos anticoloniais e também com a ideia de cidadania. Era uma história que tinha uma dimensão europeia. Por outro lado, o objetivo último era transportar isto para as discussões da contemporaneidade, no sentido de utilizar a história para discutir com o nosso público as políticas atuais de acolhimento na Europa, as políticas de asilo, a questão das fronteiras que se fecham na Europa, a documentação. Porque ao falar sobre o exílio, falamos muito sobre esta questão da documentação, da clandestinidade, dos documentos falsos, de passar fronteiras ilegalmente, procurando em determinado momento mostrar como tudo isto é intemporal. Se olharmos para a história de um exilado político português dos anos 60/70 e de um refugiado sírio hoje em dia, há muito mais pontos que os unem do que os separam. E, portanto, havia uma espécie de arco histórico entre os anos 1960 e a atualidade, uma discussão crítica e política sobre a Europa de hoje, além de uma discussão académica, naturalmente. Esses eram os objetivos. Depois é preciso dizer que o projeto apanhou o covid assim que começou. Nós começámos muito entusiasmados em novembro de 2019, entretanto, tínhamos conseguido fazer uma parceria com a Escola Artística António Arroio, ainda antes do projeto ser aprovado. A escola tem uma unidade curricular que se chama Formação em Contexto de Trabalho e estabelece parcerias com instituições ou projetos para os quais os alunos depois fazem uma espécie de “produto”. Sucedeu que os alunos de várias turmas do décimo segundo ano, de vários cursos – cinema e fotografia, design de comunicação, gravura e serigrafia, realização plástica do espetáculo – trabalharam a produzir coisas para o projeto, dentro dessa unidade curricular. Nós queríamos produzir conteúdos para fazer uma maleta pedagógica, para depois levar às escolas, e a ideia era que aquilo que os alunos produzissem integrasse esta maleta pedagógica. Nesse primeiro momento, fomos a imensas reuniões na escola, falámos com os alunos, fizemos uma grande exposição. O projeto começou com uma grande exposição presencial na António Arroio, à qual foram as várias turmas que iam participar no projeto, e depois fomos acompanhando o trabalho que os alunos iam fazendo. Dávamos apoio, dando sugestões de bibliografia, comentando, íamos às oficinas. Foi espetacular, foi uma experiência muito, muito enriquecedora. Só que depois veio o covid e nós fomos todos para casa. E um projeto que assentava maioritariamente no estar com as pessoas e estar nas escolas ficou refém da pandemia. Ficámos ali um mês completamente paralisados a pensar: o que é que vamos fazer à nossa vida? Ainda por cima tínhamos previsto coisas muito giras, por exemplo, que os alunos da António Arroio fossem com os seus materiais à escola Gil Vicente. Eles é que iam apresentar o trabalho e o projeto a outros alunos. A ideia era tornar os alunos, no fundo, uma espécie de embaixadores do projeto. Em vez de sermos nós a ir falar, íamos com alunos e os seus materiais… e isso foi tudo ao ar e ficámos ali um bocadinho paralisados, um bocado desesperados. A certa altura, até pensámos: vamos devolver o dinheiro e fechar isto, porque não sei o que é que podemos fazer. E depois, porque fomos obrigados a começar a utilizar novas tecnologias também para dar aulas, começámos a fazer reuniões, a pensar o que seria possível fazer e basicamente, houve ali um momento em que tornámos o projeto quase todo digital. E fomos muitas vezes convidados para conferências, para falar aqui e ali, tudo por Zoom, e assim adaptámos tudo ao Zoom, e ao digital. Investimos muito no site, que era uma coisa que nós já queríamos fazer, mas percebemos que o site era o sítio onde o projeto ia estar maioritariamente. Fizemos um site em quatro línguas, o que é uma loucura, mas fizemos com muita ajuda voluntária dos membros da equipa a fazer tradução e depois pagámos algumas traduções profissionais – nós temos um site em português, inglês, francês e dinamarquês. A ideia também sempre foi que os materiais tivessem disponíveis no máximo de línguas possíveis. A nossa linda exposição itinerante que ia viajar pelo país e pela raia portuguesa de norte a sul transformou-se numa exposição digital que está ainda acessível. A Sónia Mota Ribeiro, que foi estagiária no projeto durante um verão fez a parte gráfica da exposição digital. Tudo o que eram atividades artísticas, tentámos transpô-las para o digital e aí o Ricardo Correia também foi excecional, transformou teatro em teatro digital, no sentido em que montou umas leituras encenadas em Zoom. Fizemos por três vezes leituras encenadas das quais resultaram uns vídeos muito, muito engraçados. Ele fez umas montagens, em que as pessoas liam e encenavam a peça, a partir das suas janelinhas no Zoom. Fizemos um workshop de escrita teatral, a partir do tema do exílio e inscreveu-se imensa gente, tínhamos gente não só em Portugal, mas no Brasil, na Bélgica, em França. Fizemos o workshop todo em formato digital. Havia uma parte em que eu fazia o acompanhamento do ponto de vista histórico e antropológico e o Ricardo Correia fazia a parte da escrita dramatúrgica. E depois publicámos um livro, que está disponível em papel, mas que também pode ser descarregado no nosso site em formato digital. E já fora da pandemia fizemos uma leitura encenada da peça do Ricardo no Museu do Aljube e lançámos o livro. Foi muito bonito. E nessa leitura encenada presencial, o Ricardo tinha convidado dois dos exilados para participarem, o Fernando Cardoso e o Joaquim Saraiva e eles estiveram nos ensaios e tudo, mas depois um deles teve covid e não pôde participar, mas o outro participou. Foi muito interessante porque havia atores profissionais e um ator não profissional, mas que, no fundo, estava a dizer as palavras dele e as palavras da sua vida. Fizemos isso no Aljube e lançámos o livro, com a presença de alguns dos autores. Depois fizemos um filme, um documentário sobre o exílio português na Dinamarca. Na Dinamarca, fizemos uma sessão na biblioteca municipal de Aarhus, que é um edifício muito bonito e enorme. Aarhus é a cidade onde viveram, maioritariamente, os exilados políticos portugueses. E então fizemos essa sessão nessa biblioteca municipal, lá está, porque o nosso público é, precisamente, a sociedade em geral assim como as escolas. Depois fizemos um livro de testemunhos sobre o exílio português na Dinamarca, em dinamarquês. Já existiam aqueles dois livros sobre os exílios, em que havia alguns testemunhos sobre a Dinamarca, mas nós quisemos pegar nesses testemunhos, alargá-los e trazer pessoas que não fossem só os portugueses. Como o nosso projeto também era sobre as pessoas que ajudaram, a solidariedade, a entreajuda, o livro também inclui testemunhos de dinamarqueses que, de alguma forma, estiveram envolvidos. Esse livro também está disponível em papel e em digital. E depois fizemos o filme. E o filme tem a mesma lógica, ou seja, o filme tem três testemunhos de exilados, mas também de outras pessoas. Precisamente, porque queremos mostrar que é uma história que não se esgota nestes portugueses. É uma história que tem uma dimensão de facto europeia. Fizemos também um caderno pedagógico, porque percebemos que não podíamos ir às escolas presencialmente, mesmo quando a pandemia começou a atenuar e as aulas retomaram, era muito difícil aceder às escolas. Fizemos assim um caderno pedagógico que propõe atividades para o presencial e para o digital, no âmbito do teatro e do cinema, e que inclui também fichas de trabalho sobre a temática do exílio, em que nós propomos perguntas e exercícios, damos uma lista de fontes e a ideia é que os professores possam trabalhar autonomamente, embora nós estejamos sempre disponíveis para apoiar e para participar de forma mais ativa. Associado ao caderno pedagógico há umas fichas, que nós chamamos cartazes, que têm quatro temas e quatro cores diferentes, que são as fichas de testemunho, as fichas-objeto, as fichas dos materiais pedagógicos da António Arroio e as fichas de documento. Isso está tudo disponível para ser descarregado no site, são uns cartazes A3 que nós usámos também como exposição itinerante, em várias escolas. No fim do projeto, mandei imprimir imensos e enviámos pelo correio para dezenas de escolas, porque as escolas podem usar aquilo de forma autónoma. Por exemplo, a escola Rainha Dona Leonor teve isso exposto na biblioteca escolar e nós passámos lá um dia para fazer uma sessão. E isso, de alguma forma, enquadra-se dentro da nossa maleta pedagógica, no sentido em que é um material que nós fizemos e que demos às escolas em suporte físico, mas que também pode ser descarregado em suporte digital e que pode até ser só manuseado nesse formato.  

 

OEm – Portanto este caderno é para os professores. Há bocado falaste de uma mala pedagógica. E, como explicaste, essa mala não foi produzida por vocês para os alunos, mas foi produzida com os alunos. Foi um método participativo, colaborativo com os alunos da Escola António Arroio, ou também com outras escolas?

SF – Foi maioritariamente com os alunos da António Arroio que, no início, produziram imensos materiais para a nossa maleta pedagógica, apesar de alguns não terem conseguido concretizar os objetos finais, nomeadamente os de realização plástica do espetáculo, porque eram peças de cena feitas em atelier e os alunos tiveram de ir para casa, portanto ficaram impossibilitados de as concluir. Muitos dos que estavam a fazer coisas na área do cinema e da fotografia também não conseguiram concluir as montagens. Foi até relativamente dramático, porque, no fundo, tudo o que eles produziram para o projeto eram objetos pelos quais eles também eram avaliados no curso. Mas, fizemos esta maleta pedagógica, que é incrível, e que nós depois passámos a usar, por exemplo, quando fizemos a atividade final do projeto, em Paris. Foram três dias de atividades, entre as quais uma exposição no Consulado Português, à qual foram dezenas de alunos das aulas de português em França, além do público em geral. E nós tínhamos uma primeira parte da exposição que tinha os materiais dos próprios exilados políticos, cartazes, boletins, todos aqueles materiais dos anos 70, depois tínhamos os nossos cartazes e também objetos físicos da maleta pedagógica. E o que é que é a maleta pedagógica tem? Houve alguns alunos que fizeram coisas muito interessantes, nomeadamente os de design e comunicação, em que eles próprios fizeram duas maletas pedagógicas, que são uma espécie de malas de migrantes e refugiados, que têm objetos que eles construíram como, por exemplo, passaportes falsos, documentos falsos, discos vinis da época, eles arranjaram os vinis e fizeram as etiquetas, objetos que foram comprar à Feira da Ladra, simularam cartas, ou seja, eles construíram todo um conjunto de objetos que refletiam a história de um refugiado, de um migrante. Houve uns que construíram um jogo de tabuleiro com perguntas, uma espécie de Trivial Pursuit, com perguntas em várias línguas, por exemplo, “esta frase foi preferida por um exilado político dos anos 1960 ou um refugiado sírio de hoje em dia?” e as pessoas tentam adivinhar. Noutro caso, é pedido para adivinhar como é que se escreve a palavra exílio em dinamarquês. Ou seja, fizeram todo o conteúdo do jogo de tabuleiro a partir do projeto. Outros fizeram um catálogo muito bonito da exposição inicial que fizemos na António Arroio. Outros, um conjunto de materiais para um workshop de stencil, mas que são materiais que reproduzem a imagética e os símbolos dos anos 1970, os grafitis militantes que se faziam nas ruas em Portugal, durante o Estado Novo, e também em França, adotaram essa estética. Portanto temos muitas peças que têm esta dimensão material. Houve ainda uns alunos, de comunicação audiovisual e multimédia, que fizeram um jogo de computador e foi incrível. Trata-se da história de um rapaz que é alistado para ir para a guerra colonial e que depois está na guerra e tem de tomar decisões, se vai para aqui, se vai para ali, se dispara ou se decide desertar. E se decide desertar, automaticamente aparece no comboio Sud-Express a caminho de Paris. Nesse espaço surge também alguém a rasgar a sua fotografia, como se fazia com os passadores. Ou seja, eles criaram um jogo de computador, uma coisa completamente pensada para a idade deles, em que toda a temática é a guerra colonial e o exílio.

 

OEm – Acho realmente que este projeto é exemplar relativamente ao envolvimento de vários públicos e a como os tornar agentes ativos nestas discussões que, como estavas a dizer, são questões muito atuais.

SF – Houve alunos que trabalharam sob conteúdos de migrações na atualidade, estabelecendo essa correlação com o passado. Por exemplo, num filme, puseram em paralelo o testemunho de alguém que não queria participar numa guerra na atualidade, contrapondo com o discurso de um desertor dos anos 1970. Houve vários trabalhos sobre a questão das migrações hoje em dia, mas colocando enfoque, por exemplo, na questão das fronteiras, na questão dos documentos. Alguns alunos trabalharam sobre colegas migrantes e, portanto, isso levou-os a querer conhecer mais sobre a experiência de colegas de turma ou da escola que eram migrantes. A António Arroio é uma escola artística que, por isso, tem outras potencialidades, mas, por exemplo, no Rainha Dona Leonor, onde fizemos aquela exposição, os alunos escreveram pequenos textos de reflexão sobre o que é que acharam. Esses textos também são um material de reflexão muito, muito interessante. Depois fomos colocando alguns excertos desses textos nas nossas redes sociais. Nós publicávamos muito no Facebook, no Instagram e também tínhamos uma newsletter mensal em que íamos mostrando o que andávamos a fazer, e utilizámos muitas vezes esses conteúdos porque eram mesmo interessantes.

 

OEm - Portanto, vocês fizeram várias atividades em escolas em Portugal, mas também em França e na Dinamarca, é isso?

SF – Na Dinamarca não fizemos em escolas, eramos para fazer com os alunos do ensino do português, mas isso não foi possível fazer por causa da pandemia, porque íamos fazer na altura do 25 de abril, entretanto veio a pandemia e não pudemos fazer. Em França, fizemos atividades com escolas, quer no Consulado, quer nas leituras encenadas e também em sala de aula. Foram sessões dinamizadas pelos membros da Associação Memória Viva.  

 

OEm – Relativamente às atividades nas escolas, qual foi a receção por parte dos alunos e o que é que lhes suscitava mais curiosidade ou surpresa?

SF – Havia várias coisas. Eu acho que a questão dos testemunhos, levares as pessoas que viveram os acontecimentos, é muito importante. Porque eu quando vou a uma escola, mesmo que não queira, vou sempre um bocado no papel de professora, de alguém que vem dar uma aula, não é? E a ideia sempre foi contrariar um bocadinho isso do “ah, é mais do mesmo, é mais alguém que vem falar de história”. E, portanto, nós construíamos sempre uma espécie de dueto em que eu, ou alguma das minhas colegas antropólogas do CRIA, a Marta Prista ou a Sónia Vespeira de Almeida, dávamos um bocadinho de enquadramento, muito sumário e depois entrava o testemunho. E os alunos perguntavam muitas coisas, mas o que eu acho que sempre os fascinou mais foi poder interagir com os protagonistas, com o Fernando Cardoso, que esteve exilado em França, com o Carlos Neves, que esteve na Holanda, ou o Joaquim Saraiva, que esteve na Dinamarca. Eles contavam a sua história e os alunos perguntavam como é que foi com a sua família? Avisou que ia partir ou não? Como é que arranjou os documentos falsos? Uma coisa que sempre os fascinava muito era a questão da fronteira, por exemplo, como é que é passar uma fronteira clandestinamente. Depois há sempre aquela pergunta, um pouco mais polémica, que está muito associada a um certo imaginário de que os desertores são uma espécie de traidores à pátria, porque se recusaram a combater e a defender a nação. Às vezes aflorava essa questão: “ah, mas achavam bem sair… porque na minha família há pessoas que combateram e vocês tomaram essa decisão”. E os exilados sempre responderam a partir das suas próprias convicções e geravam-se debates muito interessantes, às vezes entre os próprios alunos. Mas acima de tudo notava-se que havia ali um fascínio por estar a ouvir aquele testemunho, na primeira pessoa, sobre coisas completamente distantes da sua realidade e com pessoas que podiam ser membros da sua família, que podiam ser seus avós. Alguns alunos traziam até as suas histórias pessoais, de terem família emigrada, ou de terem membros da família, por exemplo, avôs, que tivessem feito a guerra colonial. Traziam elementos da sua própria experiência de vida e simultaneamente revelavam muita curiosidade por um percurso que eles sentiam que era um bocadinho desviante. Esta coisa do ilegal, do clandestino, da recusa. Ao mesmo tempo um certo fascínio pelo lado militante, pelas causas e, às vezes, surpresa pelo contacto com uma realidade sobre a qual eles praticamente nunca tinham ouvido falar. Os textos que escreveram, revelam um bocadinho esta surpresa sobre determinadas realidades.

 

OEm – Eu gostava agora que nos focássemos sobre os elementos do subtítulo do projeto, começando por “memórias”. Tanto o título do documentário que corealizaste com a Ana Vera como o título do próprio projeto é “Contrariar o silêncio”, ou, dito de outra forma, resgatar memórias. Qual é a tua perceção e a dos parceiros deste projeto relativamente ao lugar da migração política ou da migração tout court no imaginário coletivo português? 

SF – Eu acho que há uma certa memória épica, vamos dizer assim, do exílio político português, que é uma memória que está associada à própria Revolução e ao 25 de Abril, nomeadamente aquelas imagens, que vemos muito, da chegada do Álvaro Cunhal, da chegada do Mário Soares, e, portanto, há muito esta ideia do papel da oposição ao regime do Estado Novo que era feita a partir do exílio e feita por pessoas que, em grande medida, depois se tornaram grandes figuras políticas da história contemporânea portuguesa. O exílio em França é particularmente evocativo destas experiências de exílio, o Quartier Latin, não é? E não digo só grandes figuras políticas, grandes figuras intelectuais também, pessoas que depois vieram integrar as universidades portuguesas, pessoas também da área artística, acho que há um imaginário muito ligado a grandes figuras ilustres e icónicas da sociedade portuguesa democrática e contemporânea. Mas há muito pouco trabalho sobre o exílio na sua dimensão mais quotidiana e invisível, ou seja, todas as outras pessoas, para além destas figuras mais emblemáticas. E principalmente, nesta relação estreita entre, no fundo, exílio político e migração económica, porque a maior parte destes exilados, ou praticamente todos estes exilados com quem eu trabalhei não são propriamente pessoas das elites intelectuais ou burguesas, alguns seriam, um ou outro. Mas eram pessoas que chegaram e tinham de trabalhar e muitos deles, no início, nem se identificam logo como exilados políticos, identificam-se como desertores à guerra ou refratários, porque de facto é a guerra que os empurra para fora. E alguns já saem relativamente politizados, outros vão -se politizar maioritariamente no exílio. Mas acho que há um grande desconhecimento sobre, no fundo, esta massa anónima de pessoas. Até porque alguns, pela sua filiação política, estavam muito próximos daquilo que era a gauche prolétarienne e o movimento dos établis, os que iam para as fábricas trabalhar junto dos operários, com a forma de produzir consciência política. Uma das figuras principais deste movimento francês é o Robert Linhart, que tem aquele famoso livro L’Établi, sobre a sua experiência na Citroën. E, na realidade, muitos destes exilados têm experiências próximas destas, alguns em fábricas francesas, outros, com o mesmo espírito, mas junto da emigração portuguesa. De onde surge, por exemplo, o Teatro Operário do Hélder Costa, em que eles levavam a cena peças como O Soldado ou 18 de janeiro de 1934, nas associações portuguesas, muitas vezes com desentendimentos, quase de andarem à tareia uns com os outros, por serem assuntos polémicos. Mas estava muito presente esta ideia de fazer trabalho militante junto da migração económica, não só em Paris, mas noutros sítios, em Grenoble, por exemplo, que é um sítio que eu conheço bastante bem, onde fiz investigação, em que estes militantes portugueses estavam envolvidos não só neste trabalho de consciencialização política da migração portuguesa nas associações, mas também, por exemplo, ligados a movimentos como os da contraceção familiar e do aborto, que eram movimentos sociais que se estavam a viver em França naquele momento. Ou seja, eles também estão engajados nos movimentos sociais franceses. O Vasco Martins, por exemplo, participa no maio de 68, em Paris. Algumas das mulheres que partem também para este percurso do exílio, participam nestes movimentos de luta em Grenoble, pelo direito ao aborto, ao planeamento familiar, etc. E eu acho que tudo isto é bastante desconhecido. O Victor Pereira faz a tese mestrado dele sobre as questões do exílio político português em França, a Cristina Clímaco também tem a tese dela de mestrado sobre o jornal O Salto, mas é tudo muito circunscrito ao âmbito académico. Eu achava que se sabia muito pouco, ou se sabe talvez ainda muito pouco sobre estas memórias. Falamos daqueles que, para estes alunos, são a geração dos seus avós, tios. Mesmo a Dinamarca, ninguém sabe nada sobre o exílio na Dinamarca. Muitas pessoas diziam: “A Dinamarca? Mas havia portugueses na Dinamarca?” França, toda a gente diz: "Ok, é óbvio". Mas escolher trabalhar sobre a Dinamarca foi para ir mostrar um sítio do qual ninguém se lembra e, no entanto, eles foram muito ativos e tiveram muito apoio de militantes locais. Na Dinamarca e também na Suécia. Por isso queríamos mostrar estas singularidades, vamos dizer assim, fugir um bocadinho do estereótipo que muitas vezes caracteriza o discurso sobre o exílio em França.

 

OEm – Sim. Aliás, pegando na questão dos países de destino, no início da nossa conversa, explicaste porque é que o projeto incidiu sobre França e Dinamarca. Por outro lado, ao consultar o site e os materiais do projeto, encontrei referências ao exílio para países como a Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Suécia. Não posso deixar de assinalar a ausência de referências à Suíça, uma vez que esse tem sido o meu terreno de investigação. Aproveito, por isso, para te perguntar se além deste, persistem outros silêncios que importaria contrariar? 

SF – Sim, na realidade, os locais que o projeto mostra são os locais dos exilados que trabalharam connosco, ou seja, o projeto não tinha a pretensão de exaustividade, no sentido de que não andámos a tentar representar todos os países europeus onde, de facto, existiu exílio português. A ideia foi sempre partir dos testemunhos das pessoas da Associação de Exilados Políticos Portugueses, aqueles que quiserem trabalhar com o projeto. Ou seja, de alguma forma, os exilados vinham pela associação. Apesar de eu conhecer pessoalmente muitos deles, a ideia foi: quem é que quer colaborar neste projeto, produzindo conteúdos e associando-se às atividades? Nesse sentido houve países que ficaram por representar, porque não houve ninguém que se tivesse envolvido ativamente no projeto a produzir conteúdos que refletissem a experiência nesses países. Eram as pessoas que vinham ter connosco e algumas tinham materiais produzidos, por exemplo, o Fernando Cardoso que esteve em França, o Carlos Neves que esteve na Holanda, o Rui Mota que esteve também na Holanda, o Joaquim Saraiva que esteve na Dinamarca. O Fernando Cardeira que esteve exilado na Suécia, não trabalhou diretamente com o projeto, mas recorro a ele muitas vezes porque ele tem muito material sobre o seu exílio na Suécia, já escreveu dois livros, tem fotografias sobre o salto, etc. Na Suíça, conheço um exilado político, mas não esteve ligado ao projeto, nem há propriamente muitos materiais que eu conheça. Portanto, eu acho que há invisibilidades, acho que há países que estão muito representados, a França, por exemplo, está sobre representada de alguma forma, embora também se deva ter em conta a questão numérica, além da questão um pouco simbólica, mas há países sobre os quais se sabe muito pouco. Na realidade, mesmo sobre a Dinamarca, a Suécia, a Holanda, a Bélgica, se sabe pouco. Por exemplo, na Dinamarca, há todo um arquivo, que mostramos um pouco no filme, que está depositado no Museu do Trabalho, que é um arquivo que tem que ser trabalhado, que nós não pudemos trabalhar porque não falamos dinamarquês. Seria necessário arranjar uma equipa que fosse trabalhar aquele arquivo. Os alunos da Ana Vera trabalharam-no um bocadinho, mas foram somente meia dúzia de semanas e eram alunos ainda de licenciatura. É preciso trabalhar os arquivos do exílio nas línguas em que eles foram produzidos, além de todo o conteúdo da imprensa, da televisão, tudo o que saiu sobre esta questão, todos os materiais que ficaram lá. Portanto, há muitos silêncios de memória, de testemunho, e há muito por fazer em termos documentais e de arquivo.

 

OEm – Agora, retomando o título do projeto, o segundo termo sobre o qual eu queria refletir é “objetos”, queria saber como trabalharam a dimensão da materialidade no projeto.

SF – Nós queríamos muito trabalhar esta questão dos arquivos, mas não só na sua dimensão mais clássica do documento, vamos dizer assim. É um bocadinho aquele ponto de vista dos antropólogos, tu vais falar com as pessoas sobre o exílio e elas trazem automaticamente os seus documentos falsos, a sua imprensa, os seus boletins. E nós queríamos trabalhar também os objetos que fazem parte, na realidade, dos arquivos pessoais de cada um, mas que são aqueles que geralmente não são doados às instituições, como o Centro de Documentação 25 de abril em Coimbra. E estes objetos, contam por eles a história do exílio e era isso que nós queríamos mostrar, como é que um gira-disco, um rádio, um disco, uns lençóis contam uma história. Tenho sempre que falar dos lençóis, porque é o material mais surpreendente que tivemos. São os lençóis do Carlos Neves, são uns lençóis amarelos do Hotel Hilton em Amsterdão onde ele trabalhou e, como ele diz, onde eles desviavam alguns bens para o bem da revolução e, portanto, havia assim objetos que saíam do Hotel Hilton, onde ele e outros portugueses trabalhavam e que ajudavam, de alguma forma, a suprir as necessidades das casas onde viviam que eram bastante depauperadas, vamos dizer assim. Esses lençóis, ainda por cima, como são amarelos, são visualmente muito apelativos. O Carlos Neves tem uma frase incrível, ele diz: “Nós dormíamos em tons de amarelo”. Esses lençóis, que foram remendados pela sua mãe, a determinada altura, ele ainda hoje os tem e ainda hoje os usa. E eu soube da sua existência porque uma vez estávamos a fazer uma sessão no dia das Jornadas Europeias do Património, muito antes de termos projeto e de pensarmos em ter projeto, e eu já estava a apelar aos objetos, porque no âmbito da Associação dos Exilados Políticos eu fazia muitas vezes esse apelo: “falem-me de objetos, vocês têm objetos, eu quero saber”. E ele disse da plateia: “Bom, qualquer dia pedes-me os meus lençóis”, eu disse “não sei, depende, conta-me lá a história dos teus lençóis”, e foi assim que os lençóis do Carlos Neves já fizeram exposições, estão nos nossos cartazes, se tornaram um bocadinho um símbolo para mostrar como objetos inesperados podem contar histórias muito importantes. Aqueles lençóis contam a história do exílio do Carlos Neves na Holanda e de alguma forma contam a história do exílio português na Holanda. Portanto, os objetos foram sempre, mesmo do ponto de vista pedagógico, grandes facilitadores para contar histórias. Levar os objetos foi sempre uma coisa que nós procurámos fazer, ou seja, usar a dimensão da materialidade como ponto de partida para contar uma história. E quanto mais inusitados e surpreendentes são os objetos, melhor funcionam porque despertam mais a atenção. E, portanto, temos apostado muito nisso. Depois, há outra história que é também muito interessante. No segundo dia das atividades que fizemos em Paris, quando foi a atividade final do projeto, fizemos uma vida guiada aos locais do exílio português, para irmos a um local emblemático, que é o ponto de partida para o filme, precisamente, do Hugo dos Santos, que era uma casa, uma casa mesmo, não era um apartamento, uma casa em Paris, no número 15 da Rue du Moulinet. Esta casa já não existe porque foi deitada abaixo, mas nós fomos ver o local onde a casa existiu e que hoje em dia é um prédio. Esta casa foi emprestada por uma amiga francesa, nos anos 70, ao Vasco Martins e a outros militantes portugueses exilados. E essa casa era um dos endereços da rede dos desertores na Europa. As pessoas sabiam que podiam chegar a Paris e ir àquela casa, onde eram acolhidos e encaminhados. O filme do Hugo dos Santos parte dessa memória, de uma casa que já não existe, mas que está muito presente nas memórias. Eu ouvi dezenas de histórias que se passaram no 15 Rue du Moulinet, que já não existe, mas quando fomos lá parecia quase uma peregrinação, ir ver o local onde esteve aquela casa. Portanto há esta dimensão da materialidade, não só dos objetos, mas das casas, dos locais de acolhimento. Em Grenoble também há uma casa emblemática, que é o Chemin Jésus, na rua com o mesmo nome, que é uma casa onde toda a gente era acolhida, onde toda a gente passava. E estes roteiros do exílio passam por estas histórias mais subjetivas, a dimensão material dos objetos, mas também deste património edificado: as casas que acolhiam estas pessoas e que estão no imaginário, os objetos que vinham destas casas, as fotografias que temos destas casas, etc.

 

OEm – Digamos que há uma dimensão de património intangível, porque como estavas a dizer, algumas coisas desapareceram, mas perduram na memória e simbolicamente ainda existem.

SF – Sim, são recriadas através da memória, são recriadas nos testemunhos, podem ser recriadas através do desenho, quer dizer, podes chegar a elas de muitas maneiras, por vezes pela descrição mais narrativa outras por interpretações mais simbólicas, através de produções artísticas. E eu acho isso muito interessante, a inscrição da memória na história do património edificado destas cidades.

 

OEm – Esta questão da materialidade levanta a questão da preservação dos materiais enfim, dos objetos que são testemunhos de uma história individual, que ao mesmo tempo é uma história coletiva, como estávamos a dizer. Levanta também a questão da patrimonialização das migrações e a discussão em torno de um museu nacional sobre as migrações de e para Portugal. Qual é a tua opinião sobre esta questão?

SF – Vamos por etapas. No que diz respeito ao projeto, esta questão patrimonial esteve sempre presente por causa da temática dos arquivos. Quando nós chegámos a este tema já havia muita discussão sobre os arquivos. Aliás, quando cheguei a este tema, cheguei pelos arquivos, por causa do Arquivo do Vasco Martins, por causa da associação Memória Viva, por causa do trabalho arquivístico que a Memória Viva estava a procurar fazer, num âmbito, precisamente, de patrimonialização da memória da migração portuguesa em França. Primeiro com a BDIC, agora La Contemporaine e, portanto, esta ideia de que os arquivos franceses também acolhessem este património arquivístico visto primeiramente como português. Assim, o projeto trabalha muito a partir dos espólios dos exilados, as exposições que eles montam são com os seus espólios, os seus discos, o seu material militante, etc. Alguns deles já deram o espólio a instituições como o Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra. Outros não, outros têm uma relação mais possessiva, quase corpórea com o arquivo, têm o arquivo em casa, mas tu podes ir lá ver, mostram tudo mas tem uma relação diferente com essa ideia do depósito, preferem que o arquivo esteja ali disponível para quando é preciso. E isso conduz-nos a esta ideia da patrimonialização que, em termos académicos, me interessa muito. Aliás, eu estou agora a concorrer com um projeto que parte precisamente de uma reflexão sobre essa questão da patrimonialização das migrações, mas a partir das migrações cabo-verdianas na Europa, que me tem levado a muitas inquietações académicas. Eu acho que é importante pensar sobre isto, acho que é importante fazer coisas sobre isto, principalmente nesta dimensão, mais antropológica, mais subjetiva, destas invisibilidades. Das últimas vezes que estive em Paris fui ver a nova exposição do Musée de l’Histoire de l’Immigration, comprei tudo que eles tinham para ler e uns tempos depois fiz uma intervenção, no âmbito do CRIA, sobre esta relação entre museus e migrações, e acho mesmo importante que se façam estas reflexões. Não tenho certezas, mas concordo com esta ideia de mostrar a migração nas suas diversas dimensões e temporalidades, e hoje as tecnologias permitem projetos curatoriais em suportes diversos, há potencialidades tecnológicas que eu nem consigo ter a noção do seu alcance, porque não tenho conhecimento sobre isso. Mas desde a exploração de uma dimensão cronológica a uma dimensão temática, uma dimensão crítica, uma dimensão política, porque eu acho que os museus, isso eu estou plenamente convicta, que os museus das migrações são espaços, ou devem ser espaços por excelência, para uma discussão crítica sobre a temática. Ou seja, nós também já não estamos na fase em que achamos que aquilo é um depósito de coisas, não é? E, portanto, eu acho que podem ser o ponto de partida para discussões críticas e complexas sobre essa questão. E, tal como eu disse aqui, também sobre a Europa que temos e a Europa que queremos. Eu dizia muito: este projeto é sobre a Europa que tivemos, a Europa que temos e a Europa que queremos. Basicamente, para resumir o projeto em três ideias, é isto. E os museus das migrações devem ser museus que estabelecem diálogos entre países, ou seja, também não devem ser museus fechados sobre esta ideia da migração que eu recebo e da migração que eu envio. Estou plenamente convicta que são locais que permitem cruzar tudo, o pensamento académico, o público em geral, o público escolar, os artistas que refletem sobre o tema, os artistas que são migrantes… Da última vez que estive em Paris, fui ver uma exposição muito interessante no Palais de Tokyo sobre exílio precisamente (https://palaisdetokyo.com/en/exposition/past-disquiet/). Era sobre o Chile, a Palestina, a Nicarágua e a África do Sul e sobre como é que se podem ter exposições sobre o exílio e exposições no exílio, exposições sobre os artistas no exílio, ou artistas que apoiam pessoas numa situação de exílio. Resumindo, acho que há muito a fazer e acho que nós temos imenso a aprender com aquilo que se está a fazer em muitas instituições culturais, embora continue a ter muitas dúvidas sobre como é que se faz isto.

 

OEm – Como se diz, o caminho faz-se caminhando, é meter mãos à obra. O que disseste é muito interessante, no sentido de dar conta da complexidade. É aquilo de que estavas a falar, entrecruzar várias dimensões, várias perspetivas, várias escalas, várias temporalidades. Realmente, as migrações foram-se complexificando ao longo do tempo e tudo o que for feito atualmente ou no futuro, de facto, tem de refletir essa complexidade e entrecruzar estes diferentes pontos de vista e produções, produções académicas e artísticas, pontos de vista políticos e mediáticos, olhar de dentro para fora e de fora para dentro, não é?

SF – Pois, hoje em dia já nada vive isolado, não é? Estas coisas podem ser pensadas a várias escalas, e acho que há coisas interessantes a serem feitas, como aquele museu na Bélgica, o Africa Museum que começa por ser um museu colonial e que depois tem um processo de reconversão interessante. A questão é como é que se reconfiguram estes museus coloniais para museus pós-coloniais, mas que também trazem necessariamente as questões das migrações. Não sei, acho que há muitas coisas interessantes a fazer e acho que em Portugal se tem feito pouco. Acho que temos feito muito pouco sobre isto, para não dizer praticamente nada, mas é preciso fazer.

 

OEm – Isto leva-me à pergunta seguinte, que tem a ver com a terceira noção-chave do projeto, que é “narrativas”. Vocês tentaram trabalhar as narrativas que desafiam os discursos e arquivos oficiais e nacionais. Já falaste um bocadinho de como e onde as recolheram, partindo da dimensão da quotidianidade, que está mais invisível. A minha pergunta é o que é que ficou por fazer? De certa forma, nesta tua última resposta, dizes um bocadinho isso, não é? Realmente está muito por fazer num país que festeja este ano 50 anos de democracia, mas que tem muitas dificuldades em desafiar certas narrativas e discursos hegemónicos e oficiais e em desconstruir… desde já, em questionar conceitos como “emigrante”, que é um conceito sobre utilizado e que fecha as pessoas numa figura datada, na verdade, e não tem em conta esta circulação, este vai e vem. O que quero dizer é que o substantivo “emigrante” contém esta perspetiva muito nacional de olhar para quem sai e oculta o facto de que as pessoas circulam, sobretudo numa Europa que, hoje, é uma Europa de livre circulação. Em sum, quais são as narrativas que são precisas de trazer ao de cima. Queres acrescentar algo mais ao que já disseste?

SF – Eu acho o conceito de emigração um bocadinho fechado, talvez em desuso. Parece que só falamos em emigração em momentos de crise, não é? Há a emigração dos anos 1960-70 que está associada a um momento de crise, ao Estado Novo, às condições económicas, à guerra, etc., e tudo isso justifica a emigração. Depois, volta-se a falar, quando vêm estas crises do ano 2000, da fuga de cérebros, e agora são os jovens que vão, e isso reanima os fantasmas dos anos 1960, quando na realidade nós sabemos que a maior parte dos que foram não foram os jovens, nem foram os mais qualificados e que a emigração continuou sempre, esse fluxo nunca acabou, mas no imaginário está sempre ligado a momentos de crise, a coisas pejorativas, quando na realidade Portugal sempre foi um país de onde as pessoas saíram e onde as pessoas regressam. Há muita gente que saiu nos anos 1960-70 e que a partir de determinada altura começa a regressar, por motivos de reforma, etc., há toda esta circularidade. E depois há esta geração Erasmus, há esta mobilidade constante. Assim como esta ideia de que esta mobilidade não se chama de emigração, não é? Esta coisa de classe. Os que não são pobres não são emigrantes, são expatriados. Que é um fenómeno que começas a ver com a migração de quadros, que vão para Angola, em determinado momento, que vão para o Brasil. Esta ideia de que esta migração internacional de quadros não é uma migração económica, eles vão trabalhar, mas não é uma migração económica, são expatriados, como os franceses são sempre expatriados, nunca são migrantes. E, portanto, eu acho que é preciso começar a desconstruir o lado mais estereotipado e negativo de alguns destes conceitos. Mas isto talvez mais ao nível do senso comum, porque acho que, na realidade, na academia as coisas se foram discutindo… alguns dados foram sendo desconstruídos. Estudos foram feitos até sobre a nova emigração, mas há sempre coisas para saber. O #ECOS foi uma peçazinha dentro de um puzzle, não é? Que contribuiu com o que pôde. Eu acho também que o grande problema dos projetos em Portugal é a questão da sustentabilidade: os projetos têm um financiamento, aquilo permite-lhes trabalhar durante uns tempos, mas depois… Nós continuamos a fazer coisas do #ECOS, porque ainda nos sobrou um pouco de financiamento e depois porque somos muitas vezes solicitados, ainda fui a uma escola falar sobre o 25 de abril com o Carlos Neves e com o Fernando Cardoso aqui há uns tempos e vou agora no quadro dos Encontros sobre Experiências Migratórias. Nós continuamos a fazer coisas quando somos solicitados e os nossos materiais estão todos disponíveis, eu nem sei, se calhar há pessoas a usar, não faço ideia, está tudo online, está tudo gratuito, está tudo disponível. Mas o que eu sinto é que falta às vezes sustentabilidade financeira para consolidar os projetos e dar um outro passo em frente, que a coisa depois se possa, de alguma forma, aperfeiçoar, consolidar, complexificar, acho que se perde muito, mas isso é em todos os projetos.

 

OEm – Sim, e dar seguimento também, porque às vezes o que nos é pedido é que sejamos inovadores e que criemos coisas novas, quando na verdade o que é importante é dar continuidade àquilo que foi iniciado, não é?

SF – Isso.

 

OEm – No projeto fizeram uma parceria com o teatro e usaram também o formato do filme documentário. Como é que tu vês o papel das produções artísticas no resgate e na transmissão da memória e, sobretudo, este cruzamento de produções científicas com produções artísticas? Não é algo muito comum.

SF – Sim, embora na antropologia haja algumas pessoas a fazer essas pontes. No CRIA, há algumas pessoas a estabelecer estes diálogos entre a academia e a produção artística. Eu estive durante algum tempo na área do documentário etnográfico, interessei-me pelas relações entre a antropologia e o cinema. Foi uma área à qual dediquei algum tempo da minha vida há uns anos atrás. E ainda hoje tenho interesse nisso, por isso é que também fiz o filme. Mas, de facto, nunca tinha trabalhado com teatro, nunca tinha estado muito próxima, nunca tinha passado do papel de espectadora, digamos assim. E acabou por ser uma feliz coincidência o Ricardo Correia ter escrito aquela peça. Foi uma colaboração que começou com o projeto #ECOS e que, na realidade, continua até hoje. Aliás, lançámos agora o livro do último workshop de escrita teatral que fizemos, desta vez dedicado ao tema das revoluções e temos estado a fazer o lançamento em diferentes sítios do país. Para mim, foi uma descoberta muito interessante, acabei por perceber o potencial que a arte tem de facto para transmitir mensagens e para chegar às pessoas. Em primeiro lugar, com os próprios alunos da escola António Arroio, eu acho que aí nós cruzámos duas coisas interessantes, que foi trabalhar com escolas, mas também com uma escola de artes e, portanto, tivemos as duas dimensões e eu fiquei verdadeiramente fascinada com alguns dos objetos e das peças que foram produzidas, com o discurso dos alunos sobre elas e com a força que elas tinham para contar aquela história. Tenho pena que não tenhamos tido a possibilidade de explorar mais a fundo o papel daqueles objetos. E depois, na relação com o Ricardo Correia, também há que dizer que o Ricardo, além de ator, de encenador e de dramaturgo, também é professor universitário de teatro e trabalha na área do teatro documental. Portanto, ele faz um trabalho próximo do etnográfico no sentido em que faz entrevistas, trabalha a partir de testemunhos e muito a partir de arquivo. Tem a ver com a formação que fez em Londres para o mestrado. E, portanto, o nosso diálogo é muito fácil, porque partimos do mesmo tipo de método em termos de trabalho e de materiais. Mas ele consegue dar-lhes uma outra vida, não é? E essa vida que ele consegue dar através da dramaturgia, eu acho verdadeiramente fascinante. E acho que chega às pessoas de uma maneira muito interessante. Eu vi quando foi a leitura encenada no Museu do Aljube, o impacto que aquilo tem numa sala. Tenho pena que não tenhamos tido a possibilidade de fazer presencialmente workshops de teatro e de cinema em escolas, que era uma das coisas que estavam previstas no projeto. No fundo, o projeto trabalhou até ao fim, sempre com bastantes restrições, no que diz respeito ao ambiente escolar. Porque mesmo quando já se podia ir, só se podia aceder com bastantes limitações. Mas eu gostei tanto desta partilha, que não parei mais de trabalhar em teatro, tenho escrito pequenas coisas, folhas de sala, por exemplo, publiquei um texto também num livro do Ricardo sobre uma peça dele, mas sempre como antropóloga. Ou seja, eu não sou dramaturga ou crítica teatro, não tenho qualquer tipo de aspiração a esse lugar. Quando me pedem, a minha colaboração é sempre enquanto antropóloga, é sempre o meu olhar, mesmo nos workshops de escrita teatral, os meus comentários são sempre enquanto antropóloga. E colaboro também na curadoria científica, por exemplo, agora neste último curso convidámos uma série de pessoas para falar para os participantes sobre a questão das revoluções, foi a Inácia Rezola, o Miguel Cardina, a Sónia Vespeira de Almeida, a Aurora Almada Santos. E eu faço um bocado esse papel do enquadramento, do contexto, do olhar sócio antropológico e histórico.

 

OEm – Queria concluir esta nossa conversa com uma pergunta sobre a dimensão de género. Fala-se muito do exílio no masculino e ouve-se pouco as vozes das mulheres. Qual o lugar das mulheres nestas narrativas, ou como podemos contrariar os silêncios das mulheres que saíram de Portugal, umas acompanhando os maridos, outras sozinhas?

SF – Acho que há duas dimensões importantes. No que diz respeito à história portuguesa, este exílio no feminino é muito invisível, porque se associa muito a ideia do exílio aos homens que saíram principalmente por recusarem fazer a guerra colonial e, portanto, aos desertores, refratários, etc. Mas também muitos eram perseguidos pelo seu trabalho político, independentemente da questão da guerra. E há mulheres que saíram de Portugal por serem perseguidas politicamente. Assim como há mulheres que saíram de Portugal para acompanhar os seus companheiros que eram perseguidos politicamente. Mas esse exílio é bastante silenciado. Saiu agora um livro da Associação dos Exilados Políticos Portugueses, Exílio no Feminino em que estão testemunhos, alguns de mulheres bem conhecidas, como por exemplo a Irene Pimentel, que focam essa questão. Eu publiquei um texto que saiu no ano passado na revista do Musée de l’Histoire de l’Immigration, em França, a revista Hommes & Migrations, que é uma análise do jornal O Alarme!… do ponto de vista do género, porque havia conteúdos sobre as questões de género nos jornais militantes. No caso de O Alarme!…, muito ligados às questões da contraceção, dos direitos das mulheres, do aborto, das questões dos filhos. E depois também havia artigos sobre as guerras da independência, por exemplo, o papel das mulheres moçambicanas na Frelimo. Mas eu acho que há muito para fazer em duas frentes. Uma que é a das mulheres portuguesas que se exilaram e que, em muitos casos, contribuíram depois para os movimentos sociais, políticos e para a vida civil e a vida cidadã das sociedades onde se instalaram; e outra sobre todas as outras mulheres com quem elas interagiram, aprenderam, trocaram experiências. No fundo, é como aquilo que eu há pouco dizia do apoio, da solidariedade, mas também das aprendizagens ligadas às questões da cidadania, dos direitos das mulheres, e que elas aprendem num contexto que é um contexto democrático. A França era um país bastante diferente de Portugal a esse nível, apesar de também ser bastante conservador em algumas coisas. Há pouco não referi isso, mas eu acho que é uma questão muito importante, quer para os homens, quer para as mulheres, que são todo o tipo de descobertas ao nível, por exemplo, da própria sexualidade. Estes homens saíam de um Portugal conservador, católico, patriarcal, e vão para uma sociedade escandinava ou para França. Há duas coisas muito interessantes, para já a descoberta de uma sexualidade mais livre depois, muitas vezes, esta aura que eles próprios adquirem enquanto jovens militantes que vêm de um país em ditadura e como isso, de alguma forma, entrava no imaginário daquelas próprias mulheres, não é? Era bastante sexy, de alguma forma, uma certa aura revolucionária. Mas isto, ao mesmo tempo, misturado com os próprios valores de uma militância de esquerda que não estava isenta de um certo puritanismo. Porque as mentalidades também não se mudam assim. E, portanto, havia um certo conservadorismo e puritanismo nas relações de género que estes militantes levavam consigo e que já foi estudado, por exemplo, para os militantes do Partido Comunista em Portugal, para as relações nas casas clandestinas. E das mulheres também é necessário falar porque muitas vão estabelecer relações afetivas com homens não portugueses. Aliás, eu acho muito interessante que, ao contrário da migração económica, esta migração política não é nada endogâmica, todos têm geralmente relações, ou até casam, com não portugueses. E, portanto, como é que era descobrir tudo isto? Estamos a falar de gente jovem. E temos dificuldades em nos pôr no lugar de alguém que tem 20 anos, sai do Portugal salazarista dos anos 1960-70, e de repente está num mundo novo. Lembro-me de uma entrevistada que contava que, quando o pai a foi visitar [num país escandinavo], ficou fascinado com o acesso mais livre à pornografia. De facto, havia toda uma libertação ao nível dos costumes naqueles países e, para um homem que tenha, naquela altura, 50 ou 60 anos, que vai visitar a filha que está exilada, é uma descoberta fora do comum. Há muito poucos estudos feitos sobre esta dimensão das relações afetivas e amorosas, da vivência da sexualidade e isso, acho que só consegues fazer através dos testemunhos e das narrativas.

 

OEm – Agradeço a tua disponibilidade e convido quem nos lê a visitar o site do projeto #Ecos, que é um importante manancial de informações e recursos para quem se interessa pela temática do exílio. E queria também deixar uma nota relativamente à importância de resgatar memórias, as memórias do exílio e não só, e relativamente ao valor científico, social e político deste projeto. Quero salientar igualmente a urgência do trabalho de memória, uma vez que os e as protagonistas destas vivências estão a desaparecer aos poucos. Estamos a falar de pessoas já com alguma idade. Sendo que muitos, na verdade, já faleceram e já não estão cá para testemunhar. E, portanto, há realmente urgência em resgatar memórias

SF – Isso há.

 

 

Como citar  Azevedo, Liliana (2024), "Objetos inesperados podem contar histórias importantes [sobre o exílio]", Observatório da Emigração, 16 abril 2024. http://observatorioemigracao.pt/np4/10131.html

 

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