Entrevista realizada por skype, 11 de Novembro de 2012, por Cláudia Pereira.
Observatório da Emigração (à frente OEm) - Como é que surgiu no seu percurso a ideia de estudar a imigração portuguesa em França?
Jorge de La Barre (à frente JLB) - Comecei a trabalhar sobre a imigração portuguesa em França no âmbito do DEA (Diplôme d'études approfondies) de Sociologia da EHESS (École des hautes études en sciences sociales), em 1994. Nessa altura, conheci vários jovens de origem portuguesa e apercebi-me que o movimento associativo estava a sofrer transformações. A literatura sobre o associativismo da comunidade portuguesa em França focava os portugueses da primeira geração e, na altura, começava a observar-se um movimento novo da segunda geração, ou seja, os filhos de emigrantes que, na maioria dos casos, tinham alguma experiência associativa com as associações da primeira geração. Ora, esses jovens começaram a criar suas próprias associações e eu decidi estudar uma que me parecia das mais emblemáticas, pelo menos na região parisiense: a Cap Magellan. Esta associação representava uma aposta bem diferente, até porque foi uma das primeiras a ser criada exclusivamente por jovens.
OEm - A associação Cap Magellan ainda hoje é bastante activa...
JLB - É. A Cap Magellan começou as suas actividades cerca de 1991-1992 e eu acompanhei o processo desde quase o início. A dinâmica da Cap Magellan destacava-se por mostrar interesses diferentes, além dos tradicionais ranchos folclóricos da primeira geração. Os fundadores eram estudantes universitários, tinham mais escolaridade e queriam também dar a conhecer a cultura portuguesa mais actual. O meu trabalho de DEA foi o de tentar mostrar essa nova tendência do movimento associativo português em França. Foi publicado em 1997, com o título "Jeunes d'Origine Portugaise en Association. On est Européen sans le Savoir".
OEm - Temos essa referência na lista de publicações no nosso website...
JLB - No livro estudo a emergência de um movimento associativo jovem que podemos enquadrar no contexto da construção europeia do início dos anos 1990. Por outras palavras, tenta-se entender a relação entre o associativismo jovem e a construção europeia. Com o advento da Europa sem fronteiras nos anos 1990 - de facto, uma década muito importante para a construção europeia -, observamos também a emergência de uma nova identidade nos jovens de origem portuguesa.
OEm - Daí o título do livro, "serem europeus sem o saberem"...
JLB - Essa frase é de uma entrevista ao presidente da associação Cap Magellan. Achei essa citação representativa de uma transição da identidade portuguesa da primeira geração para a segunda geração, no contexto francês. Essa consciência europeia era emergente na altura.
OEm - Essa consciência europeia emergente foi uma das diferenças que observou em relação à primeira geração de emigrantes. Em que sentido é que acha que a segunda geração tinha mais consciência europeia?
JLB - A primeira geração até tinha consciência, a diferença foi o próprio contexto histórico-institucional da construção europeia. Portugal entrou na União Europeia em 1986 juntamente com a Espanha. Foi uma grande mudança, já que a experiência da emigração dos pais tinha sido bastante traumática, desde a própria saída clandestina de Portugal, fugindo ao Estado Novo e às guerras coloniais. É claro que para a primeira geração a experiência do espaço europeu é completamente diferente, tanto como são as situações nacionais portuguesa e francesa. A ideia de "ser europeu sem o saber" ilustra essa transição: os pais desses jovens, apesar de serem europeus, não poderiam ter experimentado os novos valores europeus de integração, mobilidade, surgidos nos anos 1990. A construção europeia foi um factor muito positivo para os jovens, que talvez até tenha encorajado a reivindicação identitária. Esses jovens que estavam em França e falavam português, filhos de pais portugueses, que nunca deixaram de ter ligação a Portugal, passaram a ver essas práticas valorizadas e promovidas nesse novo contexto europeu. O que o presidente da Cap Magellan estava a dizer-me, esse "on est européen sans le savoir", é que os jovens ficavam a sabê-lo cada vez mais e entendiam que tinham que aproveitar-se de um momento histórico para ganhar espaço na sociedade francesa, para sair de uma certa invisibilidade. Se olharmos para a trajectória da associação até hoje, temos claramente uma evolução no sentido de uma confiança maior dos portugueses em França, particularmente dos mais jovens.
OEm - Em que sentido é que essa associação tem tentado uma maior visibilidade dos portugueses através dos jovens?
JLB - Desde o início da década de 1990 até aos anos 2000 houve um fortalecimento da associação. Os jovens de origem portuguesa também quiseram apostar nessa nova visão da Europa e da pertença portuguesa em França, através das actividades que procuravam dar maior visibilidade à cultura portuguesa. A ambição da associação era muito grande, o que se reflectiu na vontade de desenvolver actividades especificamente direccionadas para os jovens. Por exemplo, bandas portuguesas como Madredeus, GNR, Resistência, Delfins ou Pedro Abrunhosa tocaram em salas parisienses tais como o Olympia ou o Zénith, em concertos organizados pela Cap Magellan. Ao mesmo tempo, a associação estava preocupada em apoiar os jovens na orientação escolar, no acesso aos estágios de formação ou ao primeiro emprego. A associação passou a funcionar como uma ponte entre os jovens que procuravam emprego e as empresas; o próprio "Fórum Cap Magellan" tornou-se, ao longo dos anos 1990, um dos maiores eventos da comunidade portuguesa em França.
OEm - Como é que teve a ideia de fazer o doutoramento sobre os portugueses em França?
JLB - Como disse, comecei a trabalhar sobre os jovens de origem portuguesa durante o DEA, que é a preparação para o doutoramento, e também tinha interesse em conhecer algo que faz parte de mim, eu sou franco-português. O meu pai é português e a minha mãe é francesa, mas eu estava completamente afastado da realidade portuguesa e tive curiosidade em conhecer. Foi através da pesquisa para o doutoramento que eu conheci a realidade portuguesa, que para mim foi uma imersão tão pessoal quanto académica.
OEm - Na maior parte das entrevistas que temos feito há geralmente um aspecto da vida pessoal dos investigadores que os leva para o estudo da emigração portuguesa e, mais uma vez, verifica-se isso...
JLB - No ano de DEA comecei a investigação sobre a segunda geração de portugueses e tive a oportunidade de aplicar um inquérito a cerca de 1.200 jovens, o que foi bastante significativo. O inquérito era muito abrangente, abordava uma diversidade de temas como a escolaridade, a relação com Portugal, as práticas culturais, as práticas linguísticas, a identidade, etc. Analisei esses dados e já não se tratava tanto do movimento associativo, o foco era mais para a questão da identidade desses jovens, enquanto franceses e portugueses simultaneamente, e também em relação a uma identidade europeia emergente. O doutoramento, e posteriormente o livro, tratam dessa questão identitária.
OEm - Abordou a identidade francesa, a identidade portuguesa e a identidade europeia, se assim quisermos falar, entre a segunda geração dos portugueses em França. Já falou de algumas conclusões, há mais algum aspecto importante que queira referir?
JLB - A aplicação do inquérito foi muito interessante porque era muito ambicioso ao tocar em vários temas. Vendo os casos individualmente, tratava-se de uma pessoa com uma origem diferente e que já nasceu no país de acolhimento dos pais, esta é uma das questões da sociologia das migrações. Como é que a relação com o país de origem se mantém num contexto diferente? Os resultados mostraram que a questão da identidade orientava ou explicava as outras questões - práticas culturais, projectos de vida, etc. Ou seja, os projectos de vida, a escolaridade, as práticas culturais ou linguísticas de um jovem que se identificava como português, embora tenha nascido em França, por exemplo, eram distintas de um jovem que se declarava francês e português, que também eram diferentes de um jovem que se identificava como apenas francês. É claro que a maioria dos jovens identificava-se como francês e português ao mesmo tempo. Havia o grupo dos jovens emigrantes, com uma ligação maior a Portugal e que se sentia português exclusivamente. E depois havia uns 12% que se sentiam europeus, além da sua nacionalidade. Os resultados mostravam uma distribuição identitária, por assim dizer, que permitiam observar uma certa identificação com a Europa. Para contextualizar esses resultados, tentei relacioná-los com os dados do Eurobarómetro.
OEm - Pode explicar o que é o Eurobarómetro, para quem desconhece?
JLB - É o órgão oficial da União Europeia que desenvolve inquéritos sobre a construção europeia, seja nas dimensões económica, social, cultural, etc. O Eurobarómetro faz inclusive inquéritos sobre o sentimento europeu e as identidades nacionais, assim eu pude enquadrar o inquérito dos jovens portugueses e de origem portuguesa nesses dados mais abrangentes. O trabalho central da tese foi contextualizar os resultados do meu inquérito com os dados agregados da União Europeia, focando-me em dois países, Portugal e França, e na relação mais geral com a Europa como um todo.
OEm - Foi também da sua tese de doutoramento que resultou o artigo "Lusodescendant: le terme en questions", a problematização do conceito...
JLB - O artigo foi escrito durante a redação da tese; é uma reflexão sobre o posicionamento desses jovens que, a partir dos anos 1990, começam a se autodenominarem de "luso-descendentes", em vez de, por exemplo, "jovens de origem portuguesa". Para entender essa evolução, o trabalho de Maria do Céu Cunha foi muito importante para mim, foi publicado em 1988 com o título "Portugais de France. Essai sur une dynamique de double appartenance" (trata-se do DEA de sociologia da autora, escrito sob a direção da Professora Dominique Schnapper, também minha orientadora de DEA e de doutoramento). Este texto analisou a emergência das novas gerações dentro do associativismo português e mostrou como esses jovens negociavam o seu lugar e as suas actividades nas associações dos pais. Eu tive oportunidade de observar na altura que a utilização do termo "luso-descendente" surge mais tarde, com o movimento associativo criado pela segunda geração e para a segunda geração.
OEm - O termo luso-descendente surgiu exactamente nessa altura?
JLB - Surgiu com o movimento associativo da segunda geração. Em vez de dizerem "nós somos franco-portugueses" ou "luso-franceses", ou até "tos" (diminutivo de "portos"), esses jovens começam a designar-se a si próprios como "luso-descendentes". Isto é, mais uma vez, durante os anos 1990. E claro, o termo foi criticado.
OEm - O termo luso-descendente foi criticado?
JLB - Uma das dimensões que acho interessante é quando essa questão é pensada no contexto de um jovem de origem portuguesa em França, quando ele enfatiza a noção de descendência em detrimento da inserção no país de acolhimento dos pais, neste caso o seu próprio país de nascimento. Ou seja, o facto de o jovem de origem portuguesa ser também francês pode tornar-se até secundário. De um ponto de vista francês, dificilmente se falaria de "luso-descendente", até porque "luso" não faz muito sentido em contexto francês. Então, o próprio termo acaba por criar um novo significado para o facto de se ser de origem portuguesa em França e, ao mesmo tempo, enfatiza significativamente a ascendência. Desta forma, ele vem tornando "invisível" a própria experiência francesa.
OEm - Há mais algum aspecto da sua tese de doutoramento que queira referir?
JLB - A tese foi publicada em 2006. O período estudado - grosso modo a década 1990-2000 - é um período muito importante para a construção europeia. Temos uma dinâmica que na altura era algo inédita no contexto da comunidade portuguesa e do seu movimento associativo. Hoje em dia não se fala tanto de "construção" europeia, a experiência é diferente. Na altura, a sensação de se estar numa dinâmica de construção era importante e isto, sem dúvida, teve um efeito tanto para os jovens de origem portuguesa como para a experiência migratória de forma geral. Hoje a situação é bem diferente. De certeza, outros inquéritos sobre a situação hoje em dia mostrariam isso.
OEm - Vi no seu currículo que foi consultor de migrações internacionais na OCDE, onde tem também algumas publicações - estão relacionadas com os emigrantes portugueses ou com os emigrantes a nível geral? Como é que surgiu essa sua colaboração com a OCDE?
JLB - Eu trabalhei como consultor para a divisão de migrações internacionais da OCDE sobre a migração portuguesa em França, mas também sobre a migração cabo-verdiana, por exemplo. Sobre os jovens de origem portuguesa em França, investiguei a inserção no mercado de trabalho, a partir dos inquéritos do INSEE (Institut national de statistiques et d'études économiques) e do INED (Institut nacional d'études démographiques). Esses estudos mostravam a especificidade da presença portuguesa em França, uma combinação de boa inserção no mercado de trabalho com baixo nível de escolaridade. E mostravam também uma tendência mais recente, os jovens de origem portuguesa nascidos em França prolongarem os estudos e conseguirem empregos mais qualificados.
OEm - Vi também que um dos seus working-papers é "Une société ouverte sur elle-même? Le Portugal et le retour des émigrés", de 1996. Fez alguma investigação sobre o retorno dos emigrantes portugueses?
JLB - O sentido do texto era perceber como uma sociedade com uma emigração muito significativa também tem a experiência de pessoas que retornam ao país e não são necessariamente integradas ou acolhidas como o esperavam. Na altura, também começava a observar-se o caso de jovens de origem portuguesa a tentarem estabelecer-se em Portugal para estudar ou para trabalhar. Isto é, depois da escolaridade em França e de quase toda a vida passada neste país. Era então um fenómeno bastante novo, também não se podia falar de "retorno" para jovens que sempre viveram em França. Hoje, essas práticas são muito mais banais. Aqui também, a construção europeia terá facilitado isso.
OEm - Vi que também se interessa pela etnomusicologia. Abordou o campo da música entre os emigrantes portugueses, ou não?
JLB - Depois da tese segui uma outra orientação de pesquisa e comecei a trabalhar sobre música e diáspora, não especificamente sobre diáspora portuguesa. A perspectiva passou a ser mais ampla e, apesar de eu continuar com interesse para as questões de migração, hoje eu trabalho sobre aspectos que tem a ver com o campo da cidade como um todo, com a sua oferta cultural, musical. É uma abordagem diferente. Mas eu posso dizer que quando se trabalha sobre questões culturais, quando se analisa a música e suas várias culturas na cidade, nunca deixamos de trabalhar as questões de migração. Sobretudo hoje em dia, no nosso mundo de circulação, de fluxos e de novas tecnologias.
Como citar Pereira, Cláudia (2013), "Identidade de filhos de emigrantes portugueses: entrevista a Jorge de la Barre", Observatório da Emigração, 11 de novembro de 2012. http://observatorioemigracao.pt/np4/4679.html