Início / Entrevistas / M‐P
Nichos étnicos na emigração portuguesa histórica no Brasil
Beatriz Padilla
Beatriz Padilla é investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Iscte, Instituto Universitário de Lisboa. O seu percurso académico iniciou-se na Argentina, com a licenciatura em ciências políticas e ddministração pública na Universidade Nacional de Cuyo, Argentina, passando depois pelos Estados Unidos da América, onde se doutorou em sociologia pela Universidade de Illinois em 2001.

 

Entrevista realizada em Lisboa, 9 de Novembro de 2009, por Filipa Pinho.

 

Observatório da Emigração (à frente OEm) - Podemos começar por nos contar o percurso que a levou ao estudo da emigração portuguesa...

Beatriz Padilla (à frente BP) - O pessoal ou o profissional?

 

OEm - Ambos...

BP – O meu avô era de San Felices de los Gallegos, que é zona de fronteira ao pé da Guarda. É muito interessante porque o castelo da aldeia do meu avô foi fundado pelo D. Dinis e foi recuperado e essa zona de fronteira às vezes era Espanha e às vezes era Portugal. Quando comecei a estudar a emigração portuguesa e que vi que muitos dos portugueses que foram para a Argentina tinham saído da Guarda, fiquei na dúvida e comecei a tentar perceber por onde será que o meu avô saiu: por Espanha, pelo Porto ou por Lisboa? Não sei... Os meus avós eram de Espanha. Uns eram andaluzes e o pai da minha mãe é da zona de fronteira entre Espanha e Portugal. E era aquela grande dúvida, porque não está muito estudado, não se sabe muito de como e porquê e para onde foram as pessoas. Quando começámos a estudar a emigração portuguesa para a Argentina, o Uruguai e o sul do Brasil, começámos com todas aquelas perguntas, de onde saíram e porque é que saíram, e depois eu comecei a reflectir na história do meu avô, mas eu não sabia, realmente, e continuamos sem saber por onde é que eles saíram. Ele era bebé quando foi embora. Depois de muitos anos, recuperámos a história da família e eu já conhecia o que seria um primo mais afastado do meu avô e então agora já sei que tenho primos e tios na aldeia.

 

OEm - Até esse estudo, qual foi o seu percurso académico e pessoal?

BP – Eu sou argentina, nasci na Argentina, estudei, fiz a licenciatura lá e depois fui para os Estados Unidos e sempre tive curiosidade em relação á imigração porque na Argentina é comum, todas as pessoas são descendentes de imigrantes. E era o meu caso. Eu até acho que sou das poucas argentinas que tem quase todo o sangue espanhol, ou ibérico, enquanto os outros são sempre misturados e são metade espanhóis, metade italianos ou alemães, ou descendentes de judeus. E sempre foi uma curiosidade. E depois eu fiz o mestrado e o doutoramento nos Estados Unidos. Trabalhava mais as imigrações internas relacionadas com os movimentos sociais, mas morando nos Estados Unidos onde eu morei - no Texas e depois perto de Chicago, em Illinois - a imigração é um tema sempre presente. E como eu trabalhava no Serviço de Extensão da Universidade, sempre trabalhei com imigrantes, sobretudo os mexicanos nos Estados Unidos. Posteriormente, emigrei para Portugal quando casei com um português e, desde então, tenho estudado cientificamente e mais em profundidade a imigração, sobretudo a imigração brasileira em Portugal. Mas quando o nosso grupo da emigração "Do fado ao tango" teve este projecto aprovado e financiado pelo Instituto Camões e pela FCT, foi uma  descoberta muito interessante e muito importante porque até me ajudou a perceber melhor a imigração brasileira para Portugal, porque todos os brasileiros têm um avô ou um tetravô ou um tio que é português, e ajuda a ver os fluxos nas duas direcções. Então, eu acho que é interessante estudar os processos migratórios na sua complexidade, a imigração com a emigração. E aquele projecto da emigração portuguesa à região platina, que é assim que se chama, foi muito rico, porque penso que era uma emigração muito pouco estudada. Embora seja muito conhecida a emigração portuguesa para o Brasil, é-o em geral, no seu todo. E, mesmo aqui em Portugal, acho que se sabe pouco. Sabe-se que houve muito, mas não há assim tantos estudos conhecidos. No Brasil também é muito estudada, conhecida, mas se calhar até há mais estudos em relação aos espanhóis, aos italianos e aos alemães, porque os portugueses estiveram sempre presentes ao longo da história. No caso do nosso tema específico para o sul do Brasil, também foi uma descoberta, porque é uma emigração totalmente diferente da emigração portuguesa para o resto do Brasil. É aquela hipótese que nós denominamos de hipótese da invisibilidade: os portugueses no sul do Brasil foram invisíveis, como o foram também os portugueses que foram para a Argentina e Uruguai.

 

OEm - São completamente diferentes dos outros porquês? Podemos começar agora a caracterizar, se calhar...

BP – Sim, porque pensa-se na emigração portuguesa para o Brasil sempre como uma emigração em massa e a emigração portuguesa para o sul do Brasil tem esse contraste: são muito menos os portugueses que foram para lá. E quem estuda o sul do Brasil, estuda outros grupos étnicos de imigrantes que chegaram e contribuíram para a identidade gaúcha e fala-se sempre mais dos italianos, dos alemães, dos ucranianos, inclusivamente dos espanhóis, e muito menos portugueses. E também é muito interessante ver como quando se fala ou se pensa na emigração portuguesa, pensa-se muito mais nos açorianos, enquanto no resto do Brasil são portugueses, no sul do Brasil são os açorianos.

 

OEm - E corresponde?

BP – Sim, e não, as duas coisas. Porque, por um lado, o mais forte são os açorianos no imaginário do gaúcho e do catarinense, de Santa Catarina, porque estão vinculados e associados à colonização e à ocupação do território, porque foram e chegaram para ficar. Não iam em busca de tesouros e de grande riqueza, foram lá para ficar, e então são muito valorizados. E, sobretudo, porque nos anos 1970 começou a valorizar-se muito mais. É por isso que é muito interessante, houve um renascimento da identidade portuguesa associada sobretudo ao açoriano. E, por outro lado, ver que naquela altura o governo dos Açores começa também a explorar muito fortemente esta veia emigratória. Quando na sua história os brasileiros têm de fazer a conciliação com Portugal, é muito mais fácil e mais simpático para eles fazer através dos açorianos, do que dos portugueses. Porque a seguir, por exemplo, à independência, e a seguir a várias etapas da história brasileira, o português em algum momento também... Não digo que [o português] tenha sido perseguido, mas houve um sentimento anti-lusitano, sobretudo no fim do século XIX, que tinha razões históricas. E nesse momento o açoriano nunca era visto como português, era visto como a excepção do português. Nesse sentido, quando hoje se pensa que no sul do Brasil estão os açorianos, açorianos há poucos. Estão é muito presentes na história e naquela presença cultural, inclusivamente das tradições, dos bailes, das danças, algumas das comidas... A mitologia de Santa Catarina, por exemplo, é muito açoriana. E no Rio Grande do sul, algumas das danças são portuguesas, ou açorianas, aquelas danças folclóricas antigas. E no Uruguai, inclusivamente. Na Argentina se calhar já é menos, mas no Uruguai, que também é zona de fronteira, repete-se outra vez aquela dupla presença, e há também a presença dos açorianos e aquelas danças antigas folclóricas que foram incorporadas no folclore uruguaio.

 

OEm - Falou do envolvimento do governo dos Açores nos anos 1970...

BP – Era uma política que a partir dos anos 1970 é muito mais forte, e se calhar nos anos 1980 e anos 1990. E hoje o Governo dos Açores organiza anualmente uma série de eventos que tentam resgatar e trazer os açorianos distribuídos e espalhados pelo mundo, aos Açores, onde fazem uma grande conferência com descendentes de açorianos mas também académicos que estudam os Açores, ou a emigração açoriana e a cultura e etc. Esta essência do açoriano tem sido ressuscitada, ou houve um certo renascimento. E porquê? Porque os Açores também investem dinheiro e presença e apoio aos portugueses no mundo. Enquanto há uma crítica ao governo português que não dá atenção, que descuida, que fecha consulados, os Açores estão presentes. Nos lugares onde há poucos açorianos, o vínculo com Portugal é, às vezes, via os Açores, sobretudo como em Santa Catarina e no Rio Grande do sul. Voltando ao tema dos açorianos, Santa Catarina era, até aos anos 1980, uma ilha que estava muito isolada e foi possível conservar muitos costumes açorianos, que demoraram, sei lá, um ou dois séculos, e que foram mantidos. E é nos anos 1980, quando chega a electricidade a algumas aldeias dentro daquela ilha, que há uma certa redescoberta do açoriano e das raízes açorianas em Santa Catarina. E é a partir daí que é muito mais explorada como uma veia académica, uma veia histórica e de laços com os Açores.

 

OEm - Gostaria que explicasse melhor a tese da invisibilidade da migração. De qual delas e porquê?

BP – Referia-me a ser uma migração que é invisível em relação a outras comunidades migrantes. Ou seja, a visibilidade dos imigrantes passa, geralmente, pelo seu número em relação a outros. Na Argentina era muito mais evidente e numerosa a imigração espanhola, italiana, se calhar até outros grupos que aparecem sem ser maioritários, como os alemães, mas os portugueses passam despercebidos. E isto porque ao longo da história da Argentina e do Rio da Prata, os portugueses sempre estiveram presentes. Historicamente chegaram com os conquistadores, porque sabemos que havia muitos portugueses nas tripulações dos barcos espanhóis e inclusivamente nos censos antigos sempre houve portugueses muito relacionados com a navegação e com o comércio. No Uruguai, a mesma coisa. A maioria da imigração é italiana e espanhola, ou seja, os portugueses que há, são poucos. E no sul do Brasil, como eu disse. Embora a maior comunidade até hoje, no Brasil, seja a portuguesa ou descendente de portugueses, e sempre foi maior que a dos italianos - mesmo que se fale muito dos italianos, houve mais portugueses - no sul do Brasil é sempre minoritária, é quase invisível proporcionalmente. A sua visibilidade é através das associações e da sua presença cultural. E por isso é que falamos nesta tese da invisibilidade.

 

OEm - Voltando um bocadinho atrás e ao seu percurso académico, e ao vosso projecto "Do Fado ao Tango...", o que é que vos levou a fazer esse projecto, e como é que ele começou? Como é que passaste da imigração brasileira para a emigração portuguesa?

BP – Acho que foi uma sorte incrível. Foi um concurso específico do Instituto Camões que foi, desafortunadamente, descontinuado e perdeu-se o interesse, mas é realmente uma pena. Foi um concurso do Instituto Camões e da FCT. E, por acaso, um número pequeno de investigadores do CIES tinha interesses na região platina, uma região da América Latina, e então planificámos e fizemos uma proposta de projecto que foi aprovada e financiada. Foi uma oportunidade que respondia aos nossos interesses e aos interesses do Instituto Camões, de recuperar e de saber mais do que se tinha passado naquela região.

 

OEm - Vocês tinham a percepção de que havia emigração actual, ou tinham a perspectiva histórica e iam começar por aí?

BP – Era mais uma perspectiva histórica. Mas como a maioria de nós não é historiador, se calhar também queríamos estudar, dentro daquela emigração, a que ainda conseguisse ser recuperada ou estudada ou identificada. E também diferenciada daquela emigração para o Brasil durante o século XIX e início do século XX, quando era uma quantidade grande de portugueses a ir embora. No nosso projecto decidimos considerar o período a partir dos anos 50. Ou seja, a partir de 1950, o que até parece um contra-senso porque a partir dos anos 1950 se diz "a emigração portuguesa é para a Europa". Mas nós sabíamos que não era tão assim. E, realmente, o nosso estudo consegue comprovar, não só com as histórias de vida das pessoas, que houve emigração portuguesa, e se calhar aqui pode recuperar-se o estudo do Marcelo Borges das redes da emigração. Nós estudamos sempre as redes e, no caso da Argentina, do Uruguai e do sul do Brasil, era muita a emigração por redes. E conseguimos fazer aquele seguimento de ver quem tinha saído e porquê, mas sobretudo a partir dos anos 1950, quando a maioria dos estudos se foca na emigração portuguesa para a Europa e, se calhar, também Estados Unidos e Canadá. E como as redes de emigração para a Argentina eram tão fortes, funcionavam mesmo, mesmo, as redes, foi ainda possível manter aquela emigração ao longo do tempo. Até porque, como disse o Marcelo Borges, muitas vezes era uma migração circular, porque as pessoas iam e voltavam, iam e voltavam, até no fim se estabelecerem na Argentina e levarem as famílias, eram idas e vindas ao longo de 20 ou 30 anos. E foi muito interessante e acho que é inovador, pelo menos foi uma descoberta para nós e um contributo ao que se tem estudado da emigração portuguesa.

 

OEm - E, então, quais eram as características dessa emigração pós-anos 1950?

BP – Acho que, neste caso, a tese da invisibilidade é para os três países, ou para as três micro-regiões dentro desta região platina. Em relação à emigração para a Argentina, embora o Marcelo já a tenha estudado, nós não sabíamos destas redes, sabemos que os emigrantes provinham sobretudo do Algarve e da região da Guarda. E o resto era de vários lugares diferentes. Eu nem sequer sabia antes, mas o pai da minha tia era português do Algarve, só soube muito depois. Inclusivamente ela veio depois a Portugal quando o pai morreu. Isto, só para ilustrar que havia uma presença até recentemente. Já não emigram, mas há uma presença forte. E, em relação à Argentina, também é muito interessante por exemplos os nichos laborais que eles ocupam, porque são diferentes da maioria dos emigrantes que têm a padaria, ou que têm a loja, etc. Na Argentina há sobretudo dois mercados muito diferenciados, um que é em Escobar, a produção das flores e horticultura, o outro na indústria da construção, os tijolos e os materiais de construção. Já os portugueses que foram para o Uruguai, são bastante diferentes e estão muito mais focados na agricultura, instalados à volta da cidade de Montevideu, mas com pequenas explorações agrícolas. Alguns obviamente evoluíram, os descendentes já são profissionais [qualificados], mas ainda há uma presença forte nas hortas também à volta da cidade de Montevideu. E há uma comunidade que pessoalmente não estudei, mas sim a Prof. Helena Carreiras, que são os uruguaios de Salto, onde há muito poucos portugueses, mas há uma memória histórica de portugueses que chegaram àquela região via sul do Brasil. E houve um renascimento desta identidade portuguesa, já raramente as pessoas falam português, tudo fala em espanhol, mas há um panteão de portugueses no cemitério, que eles decidiram unir esforços para isto, e houve uma escola da zona que foi chamada de Escola de Portugal. Portanto, houve aqui uma recriação da identidade portuguesa na zona, baseada no nome da escola, que tinha outro nome e decidiram chamar-lhe Escola de Portugal. Já no sul do Brasil é interessante porque, embora sempre existam portugueses que têm a padaria, ou o café e o restaurante, e esses sim continuam e é um nicho, não é o único nicho. Muitos dos outros portugueses, daqueles que tinham emigrado nos anos 1940, 1950, dedicaram-se também à agricultura, e depois começaram a fazer o que eles chamaram o "percurso do pão". Chegavam e, então, existia um nicho étnico naquela altura, naquela economia dos anos 1950 e 1960, onde os portugueses, quando chegavam, eram ajudados por outros portugueses - reproduz-se sempre esta história - e muitos inseriam-se no que chamavam "o percurso do pão": começavam a fazer pão para uma padaria de um outro português e depois tentavam chegar a ter uma padaria e a sua própria distribuição. Ou seja, era o que se chamava a verticalização do seu sector. E cada um conseguia trabalhar num negócio, apercebia-se como funcionava e tentava fazer a mesma coisa. E na restauração também. Mas depois, os filhos dedicaram-se a outras coisas, alguns estavam no mercado e têm ainda lojas no mercado no centro de Portalegre, portanto é bastante mais diversificado. Mas uma das coisas que me chamou a atenção foi que ainda chegaram alguns portugueses vindos de Angola, das ex-colónias, o que também foi um percurso pouco estudado. Houve retornados que vieram para Portugal e que depois de algum tempo perceberam que não se iam adaptar porque ainda havia uma mentalidade muito fechada e foram para o Brasil por terem lá contactos - foi o caso de alguns dos nossos entrevistados - e outros que foram directamente por algum motivo ou algum conhecido ou mesmo quando estavam a fugir e a sair de Angola por a guerra já ter começado, inclusivamente alguns pela África do Sul, e decidiram não ficar e foram directamente para o Brasil. Foram tempos muito duros e muito difíceis para eles, mas geralmente foram apoiados e ajudados por outros portugueses.

 

OEm - A inserção profissional desses era semelhante à dos outros?

BP – Não. Como era uma situação de emergência, no início foi de sobrevivência. Mas alguns dos que vinham de Angola já tinham desenvolvido um percurso de inserção profissional mais qualificada, ou tinham estudado e tinham cursos, e aos poucos conseguiram inserir-se no mercado laboral brasileiro no que já tinham trabalhado. Por exemplo, outras pessoas que tinham um currículo muito conhecido em Angola e tentaram fazer a mesma coisa no Brasil e não correu bem, mas como a pessoa era economista conseguiu também trabalhar sem problemas como economista. Ou seja, é um percurso, nesse sentido, mais diferenciado, enquanto aquele que vinha do continente, ou de Portugal em geral, se calhar inseriu-se mais no comércio. Isso é a grande diferença, isto fazendo uma generalização muito ampla.

 

OEm - E essas pessoas que foram das ex-colónias, dirigiam-se a todo o Brasil ou concentravam-se no sul?

BP – Eu acho que foram para todos os lados. Inclusivamente, se calhar foram muito menos para o sul do Brasil e mais para o Rio de Janeiro e São Paulo, isso de certeza. Só que, neste caso, também chegaram lá e, se calhar, a construção da identidade é um bocadinho diferente porque sofreram na pele serem mal vistos por terem vindo de África, não pelos brasileiros, mas pela comunidade portuguesa que pensou que eram os maus da fita porque estavam a fugir de Angola. E, nesse sentido, acho que sofreram mais injustamente, porque muitos deles sentiam-se tão portugueses como angolanos. Tivemos muitos casos de entrevistas muito emotivas, de as pessoas a chorarem e quase que não conseguiam pensar na sua terra que era Angola, mais que Portugal, embora tivessem passaporte português e trabalhassem para o governo português. Mas é aquele sentimento muito misturado de serem portugueses, mas portugueses angolanos, e depois não conseguirem mais voltar a, sobretudo, Angola; porque a Portugal muitos deles voltaram. Muitos deles, inclusivamente, queixavam-se de, quando estavam em Angola, terem que voltar a Portugal todos os anos, por ser obrigação de voltar à metrópole, e de gastarem o dinheiro que tinham poupado. Então, foram histórias muito diferentes da maioria das histórias que conhecemos. E, depois, no sul do Brasil conseguimos identificar jovens e até uma emigração muito mais recente. Não estávamos à espera, mas de repente encontrámos pessoas que tinham emigrado recentemente, a partir de fins de 1990, por amor, por terem conhecido um brasileiro ou uma brasileira, ou por outros motivos, mas outras que emigraram por motivos profissionais. Encontrámos alguns portugueses deste tipo sobretudo em Florianópolis, em Santa Catarina, que é um paraíso, e as pessoas a justificar a sua emigração não só por uma questão de clima e de beleza natural, mas também pela possibilidade de desenvolverem as suas capacidades profissionais. Lembro-me de alguns casos de arquitectos que contavam que em Portugal até trabalhavam nos melhores ateliers de arquitectos portugueses, mas que estavam, diziam mesmo, "cansados da vidinha" que era ir trabalhar, não poder fazer grandes criações nem ter muita liberdade de criação, voltar para casa e ser sempre aquela mesma coisa, aquela rotina. E no Brasil conheciam arquitectos muito famosos, muito reconhecidos, e então tiveram a possibilidade de serem convidados e foram trabalhar para lá. E em pouco tempo, não só tinham trabalhado para outros arquitectos, como até já tinham o seu próprio atelier e já podiam fazer as suas próprias criações, o que para um jovem é muito importante.

 

OEm - Teriam sido convidados por quem?

BP – Tinham conhecido alguém... Por exemplo, neste caso era um arquitecto brasileiro de origem japonesa que tinha um atelier muito conhecido em Santa Catarina, e conheceram-se e convidou-o para ir. E então, essas pessoas, na possibilidade de criar e de fazer negócio e de crescer no nível profissional e pessoal, alguns profissionais decidiram ir.

 

OEm - E isso foi, então, no final dos anos 1990, início dos anos 2000...?

BP – Sim, início deste século.

 

OEm - A Beatriz tem alguma percepção dos números envolvidos nesta emigração mais recente?

BP – Não. Em Florianópolis e em Santa Catarina são cônsules honorários e eles tinham imensa dificuldade. Mas quando falávamos com as pessoas, elas diziam-nos "eu conheço um português de não sei onde", ou "há um português naquela escola", ou seja, tínhamos a percepção clara de que havia alguns. Se calhar não numericamente representativos, mas havia.

 

OEm - Pessoas com licenciatura...?

BP – Sim.

 

OEm - Jovens...?

BP – Sim, jovens com vontade de fazer coisas e de desenvolver. Inclusivamente, em Porto Alegre também há alguns. Tinham um nicho de trabalho maior. Sabemos que os brasileiros emigram para cá e neste caso é alguns portugueses a emigrarem para lá, mas numa inserção laboral também diferenciada. E aí era a possibilidade do mercado brasileiro, que é enorme. Se calhar é aquela mentalidade de novo mundo, em que as pessoas são mais inovadoras, mais abertas, querem fazer coisas, há ainda muita coisa por fazer. Nesse espírito, também de conquista, há pessoas a emigrarem. As pessoas dizem "conheço um português que chegou há pouco tempo" e são sempre pessoas com projectos profissionais [qualificados]. Também descobrimos que, não exactamente através do programa Erasmus, mas que há vários estudantes internacionais portugueses que vão para lá, só que depois não querem voltar. E isso também se vê com alguns estudantes que vão para a Argentina ou para o sul do Brasil, para Santa Catarina, onde há uma procura maior, depois gostam tanto que não querem voltar. Obviamente voltam porque os pais obrigam, mas se calhar se dependesse deles, ficavam.

 

OEm - Nas migrações que vocês estudaram, nas posteriores aos anos 1950, identificaram períodos de retorno?

BP – Por acaso, naquela altura não. Ou seja, houve menos retorno, as pessoas também eram mais pobres e acho que o que mais marcou foi a vida dura que os miúdos tinham naquela altura. Ou seja, naquela altura acabaria por ser boa ideia eles emigrarem, mesmo com saudades, mas todos tinham histórias muito tristes, de inclusivamente terem que ir trabalhar a terra em idades muito novas, com sete e oito anos...

 

OEm - Esses miúdos emigraram com os pais?

BP – Sim. Geralmente verificava-se que o homem emigrava primeiro e depois iam os filhos e a mulher.

 

OEm - E vocês entrevistavam os migrantes ou os filhos?

BP – As duas coisas, dependia de quem estivesse ainda vivo. Alguns deles foram aqueles que tinham emigrado ainda como miúdos ou como jovens e que tinham ficado lá e já falavam português brasileiro. Mas era interessante o porquê de terem emigrado. Muitos deles contaram que emigraram porque tinham os seus contactos, mas também já as mães e os pais estavam a prever que em poucos anos iriam ser enviados para a guerra, isto ainda antes da descolonização. Já falavam de não querer mandar os seus filhos e então planificavam a estratégia com anos de antecedência, para se assegurarem de que os filhos não seriam enviados. Mas muitos deles tinham mesmo dificuldades porque tinham que sair antes dos 15 ou 16 anos, se não depois já não podiam sair. A estratégia estava sempre organizada à volta daquela situação, sobretudo dos rapazes, as raparigas não tinham esse problema. A emigração também era controlada durante o Estado Novo e não é a mesma coisa saltar a fronteira para ir para França ou para ir para outro lugar, e "saltar" o Atlântico. E muitos deles durante muito tempo não conseguiram voltar a Portugal, só a partir dos anos 1980 e 1990 é que alguns conseguem, e obviamente têm aquele jogo desta dupla identidade, de se sentirem portugueses mas também de se sentirem muito brasileiros e é interessante porque nós não encontrámos uma única crítica aos brasileiros ou à sociedade brasileira como sociedade de acolhimento, não foram identificadas situações de discriminação. Obviamente que em alguns lugares não faltava a piada ao português, mas em geral não se falou de preconceitos. Às vezes, olhamos para trás e esquecemos algumas situações, mas em geral não houve, as pessoas estão integradas e muitas nesta dupla ou tripla ancoragem identitária - serem gaúchos (no sul do Brasil), serem brasileiros e serem portugueses. Voltaram alguns, mas sempre com a ideia de voltarem para o Brasil, porque a pessoa estabeleceu-se e a família está lá, portanto faz mais sentido ficar lá porque querem ver crescer os netos, os bisnetos, etc. Como também as histórias foram de muito sacrifício até que a vida melhorou, muitos só conseguiram voltar muitos anos depois.

 

OEm - Voltar para visitar?

BP – Sim. Mas também apanhámos muitas histórias daquelas estereotipadas, em que aqueles que voltam têm que mostrar que o projecto migratório foi um sucesso, e que alugaram um carro para mostrar na aldeia que chegaram com um carro bom e mostrar com essa história que a sua vida tinha corrido bem. Também encontrámos histórias mais tristes, sobretudo no sul, em que muitos estavam organizados para se apoiarem mutuamente e serviam de apoio a quem tinha mais dificuldade. Porque também era verdade que muitos tinham muita dificuldade; não digo que fossem pessoas sem abrigo, o que seria hoje, mas pessoas que tiveram dificuldades de se inserirem...

 

OEm - E tinham emigrado em que altura?

BP – Alguns só tinham emigrado mais tarde. Lembro-me de um caso de um senhor que tinha emigrado de Angola, que era português e que tinha emigrado para Angola e depois para o Brasil, e que o seu percurso sempre foi muito limitado, não tinha feito uma carreira numa profissão, não tinha recursos ou capital social, nem em Portugal nem em Angola nem no Brasil, então houve uma dificuldade. Houve alguns outros, mas a maioria em melhor situação.

 

OEm - E essas pessoas que vocês estudaram que emigraram nos anos 1950, foram mais para o Brasil ou também encontraste na Argentina e no Uruguai?

BP – Mais para o Brasil e para a Argentina. A emigração portuguesa para o Uruguai também é mais residual e baseada nas redes, uns chegaram lá por acaso. Embarcavam e não sabiam para onde iam. Apanhámos algumas histórias engraçadas: eles pensavam que iam para a Argentina e ficaram em Montevideu. Porque a pessoa ia para a América, e se calhar uns iam para os Estados Unidos e outros acabavam na Argentina sem saber, sem quase escolher. E, no caso do Uruguai, foi mais usual. Mas é engraçado como eles no Uruguai têm uma Casa de Portugal, que é uma entidade que já foi visitada por personalidades portuguesas - o Saramago foi lá várias vezes, o Presidente da República - e existe um vínculo forte com Portugal, mas há muito pouca gente. A identidade portuguesa é reproduzida e mantida por pessoas que têm uma afinidade com Portugal, mas uma afinidade indirecta porque casaram com algum descendente português ou assim por um motivo destes. Mas na Casa de Portugal eles têm um grupo folclórico que faz as danças típicas folclóricas, muitas vezes quase recriadas na emigração - porque as pessoas vinham de diferentes zonas de Portugal. E então, o rancho folclórico tradicional foi buscar algumas danças com raízes portuguesas antigas, que ainda existem no Uruguai, e outras crioulas que se chamariam gaúchas, fazem aquela mistura. Também têm um programa de rádio. Num lugar tão pequeno, os poucos portugueses realmente conseguem ter a presença portuguesa. Embora até muito poucos falem português, mas está presente: alguns com a dupla nacionalidade, na Argentina e no sul do Brasil. A América Latina é uma região que sempre atravessa crises. A crise económica a partir dos anos 1990 tem contribuído para que os latino-americanos, por um lado, redescubram os seus antepassados e a sua história e também aproveitem e agora tenham dois passaportes: o argentino, brasileiro ou uruguaio, e o português. O nosso projecto foi depois da grande crise da Argentina, que afectou imensamente também o Uruguai e então naquela altura houve muitas pessoas a pedirem a nacionalidade.

 

OEm - O projecto começou quando, então?

BP – Começou em 2005 e a crise da Argentina foi em 2001-2002. E as pessoas começaram a pedir o passaporte. Nesse sentido, se calhar é uma visão mais utilitarista, podemos dizer, mas não deixa de dar relevância à história da família e ao querer descobrir Portugal. Até porque, e nós descobrimos isso com a imigração brasileira, os brasileiros chegam cá a pensar que Portugal é um país igual ao que era nos anos 1960 quando os portugueses saíram. Quando chegam a Portugal vêem que, claro, é um país de 1º Mundo, que avançou, que se desenvolveu. Então, existe um contraste das expectativas. Se calhar, até aos anos 1980, alguns dos países da região, tanto a Argentina e o Uruguai, como o Brasil, tinham um desenvolvimento ao mesmo nível de Portugal, ou mesmo superior, porque tinham avançado sobretudo ao nível da educação, o que só acontece consideravelmente a partir da revolução em Portugal. É aí que se vê o contraste porque aqueles países ficam e Portugal avança, desenvolve, entra na União Europeia, etc., etc. e antes era diferente. Aqueles que chegam vêem um Portugal diferente, moderno e muitos estavam à espera de encontrar as pessoas todas vestidas de preto, na aldeia, e com bigodes (risos), o tradicional do estereótipo.

 

OEm - Portanto, quando vocês escolheram a região platina, escolheram essa zona por ser próxima, por formar uma região, mas tem-me falado é de distinções: inserções profissionais diferentes, origens geográficas também diferentes porque para a Argentina iam muitos algarvios e para o Brasil mais os açorianos...depois dos anos 1950?

BP – Não. O imaginário está mais associado aos açorianos, mas em termos de regiões de origem eram mais os da região Norte, como transmontanos ou da região do Porto e de Aveiro...

 

OEm - Mas portanto, destacou algumas diferenças, que são diferenças, não é? O que é que havia em comum, então, nesta emigração? Havia alguma coisa em comum que os tivesse levado a escolher esta região? Estavam, se calhar, à espera de encontrar semelhanças...

BP – A nossa escolha da região parte mais parte mais do destino, ou seja, da região platina, do que da emigração portuguesa em si. Ou seja, foi feito o inverso. E porquê? Porque a maioria de nós é originário de lá. E, então, há na construção da América do sul e da região sul, do cone sul, um imaginário muito forte que inclusivamente está ligado à construção, durante a época das colónias, da região platina. Por exemplo, a disputa da região entre a coroa portuguesa e a coroa espanhola, também como região de fronteira, e onde existem algumas características geográficas comuns que estão na mentalidade do gaúcho no sul do Brasil e no gaucho do Uruguai e da Argentina. Ou seja, existia uma visão mais geográfica e cultural da região platina do que da origem da emigração. Dentro da emigração portuguesa, são tipos de migrações diferentes as que se dirigem a cada um dos países que formam a região. Interessante que no caso da emigração para a Argentina são os algarvios e o Algarve é uma região que não emigrou. Se calhar houve os algarvios que emigraram para o sul de Espanha e para as Canárias, e inclusivamente houve portugueses que chegaram via Canárias. Outro caso interessante é o da Guarda. No caso do Uruguai, eram sobretudo do Norte e às vezes das Beiras. E no Brasil encontramos aquele grupo vindo das ex-colónias, se calhar os retornados que acabaram por lá, e outros, sobretudo da região Norte, entre Aveiro e Espanha. Encontrámos algumas de Marco de Canavezes, de Esposende, de aldeias de perto do Porto, de Chaves, da região de Trás-os-Montes. E era sempre uma emigração mais rural, que não tinha grande capital social de partida. Tinham as suas terras, aqueles que não tinham nem conseguiam emigrar, e inseriam-se na agricultura no destino, ou passavam para o percurso do pão. No caso da Argentina, dedicavam-se às flores e é muito interessante porque Escobar organiza a Festa Nacional da Flor, naquela cidade vive-se à volta das flores.

 

OEm - E nota-se que os portugueses têm uma grande importância aí, ou não?

BP – É mais na nossa análise, eu acho que por enquanto passa despercebido lá, porque esta festa não é como a que eu conheço mais, na zona dos vinhos, a Vindimia. A Vindimia retrata sempre alguma coisa importante do passado e sempre está ligada à imigração, àqueles que chegaram e trouxeram o vinho, etc. A Festa da Flor tem menos essa conotação.

 

OEm - Nessa emigração que vocês consideraram, a que ocorre a partir dos anos 1950, identificaram fases?

BP – Houve picos, dependia mais do país. Houve nos anos 1950-1960, tanto para a Argentina como para o Brasil, só que depois não conseguimos identificar para o sul do Brasil. E depois também houve um nos anos 1970, antes e depois do 25 de Abril, uma migração política como motivações diferentes. No caso do Uruguai é muito mais difícil porque têm muito poucos censos, não têm informação suficiente, não é possível quantificar vagas; enquanto na Argentina e no Brasil é possível. Eu diria que no sul do Brasil conseguimos identificar esta nova vaga, que com a Maria Xavier chamamos de "entre séculos", esta mais recente, enquanto na Argentina não se verifica. Nem no Uruguai.

 

OEm - Então, a haver alguma emigração portuguesa para a região platina actualmente, será a que se dirige ao Brasil...

BP – Com características muito específicas, sim.

 

OEm - As outras estarão estagnadas...

BP – Não se pode chamar emigração, mas vêem-se alguns investimentos na região. Por exemplo, há investimentos portugueses na Argentina, investimentos no vinho. Nesse sentido, a presença vê-se com o investimento internacional na Argentina, embora sobretudo estes investimentos sejam feitos no Brasil, não necessariamente no sul do Brasil.

 

Como citar   Pinho, Filipa (2009), "Nichos étnicos na emigração portuguesa histórica no Brasil. Entrevista a Beatriz Padilla", Observatório da Emigração, 9 de Novembro de 2009. http://www.observatorioemigracao.pt/np4/4712.html

 

Observatório da Emigração Centro de Investigação e Estudos de Sociologia
Instituto Universitário de Lisboa

Av. das Forças Armadas,
1649-026 Lisboa, Portugal

T. (+351) 210 464 322

F. (+351) 217 940 074

observatorioemigracao@iscte-iul.pt

Parceiros Apoios
ceg Logo IS logo_SOCIUS Logo_MNE Logo_Comunidades