Interview by telephone, on November 4th, 2011, by Filipa Pinho.
Observatório da Emigração (OEm) - Podemos começar por onde normalmente começamos estas entrevistas, sobre como chegou ao estudo dos portugueses que vivem num país estrangeiro, neste caso os portugueses em França... Explica, no seu livro, que existe um factor pessoal a contribuir para este percurso...
Manuel Antunes da Cunha (MAC) - O que me parece é que grande parte dos investigadores tem um percurso pessoal que está ligado a essa realidade. E é o meu caso.
OEm - É verdade, sim!
MAC - Nasci em França em 1972 e vim para Portugal com os meus pais em 1983. Tinha 11 anos e fiz, depois, todo o meu percurso escolar e universitário em Portugal. Até que voltei para França quando já tinha 25 anos, para estudar comunicação social, porque trabalhei num jornal regional de Braga, o "Diário do Minho". Nem fazia ideia que ia até doutoramento, e muito menos trabalhar sobre a comunidade portuguesa e a emigração. Quando cheguei a Paris, pelo facto de ter nascido e regressado a França e de ter acesso à RTP Internacional, o discurso específico que este canal tinha sobre a emigração interpelou-me. Por isso, interessei-me por este tema e quis estudá-lo. Devido ao meu percurso pessoal, tentei manter uma certa distância e objectividade - o que nem sempre se consegue a 100% - e procurei levar a cabo um estudo no qual dou conta dalgumas realidades e pormenores que me pareciam muito interessantes sobre a questão da identidade nacional e dos olhares cruzados sobre Portugal, a emigração e a diáspora.
OEm - Portanto, é filho de emigrante(s)?
MAC - Sim. O meu pai emigrou para França com 17 anos e trabalhou em várias cidades. A minha mãe foi ter com ele posteriormente e instalaram-se em Clermont-Ferrand, onde nasci.
OEm - Os seus projectos de investigação, quer o de doutoramento, como o de pós-doutoramento, têm estado associados ao estudo da recepção dos média radiofónicos e televisivos, em relação a um universo de pertença associado a esta recepção, neste caso pertença portuguesa ou luso-descendente. É isto, não é?
MAC - Sim. Actualmente, sou Professor associado convidado da Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade Católica Portuguesa (Braga) e, embora no último ano e meio não tenha desenvolvido tanta investigação, desde o meu doutoramento e pós-doutoramento tenho trabalhado essas áreas. Ultimamente, tenho também investigado a questão dos blogues dos luso-descendentes.
OEm - O que sugeria, então, era que sintetizasse estes projectos, em termos de objectivos e principais conclusões. O primeiro artigo que li foi o de 2002 sobre a genealogia do público radiofónico. Uma das frases que achei interessante foi que entre 1964 e 1968, os média franceses descobrem esta migração trabalhadora mas a-social. A pergunta que me surgiu logo foi o que quer dizer, neste contexto, o "a-social". Porque entre si os portugueses comunicavam, sociabilizavam - como diz a seguir. É no sentido da sociedade de acolhimento? Isto é uma pergunta muito específica, mas podemos começar por aí...
MAC - Desde a sua chegada a França no fim dos anos 1950, início dos anos 1960, os portugueses foram construindo uma imagem de povo trabalhador, quase invisível, que não colocava problemas à sociedade de acolhimento. Alguns anos mais tarde, falava-se em "um milhão de silenciosos". Não se dava por eles. Em 1964-1968, quando aparecem os primeiros artigos na imprensa sobre a imigração portuguesa, esta é definida como a-social porque vivia muito entre si. Hoje continua a haver uma forte dinâmica comunitária, mas estão espalhados por todas as pequenas cidades em redor de Paris e em toda a França. Naquela altura, estavam juntos no trabalho e reagrupavam-se sobretudo nos bairros de lata - Champigny, o mais conhecido, albergou dezenas de milhares de portugueses, como mostrou Marie-Christine Volovitch-Tavares - ou outras habitações em condições precárias. Nessa altura, alguns deles não queriam sair dos bairros de lata, porque queriam ficar entre si. E é nesse sentido que alguns artigos falam de uma população "a-social" que não queria integrar-se, nem ir para habitações sociais que eram propostas.
OEm - Agora pode falar-nos sobre o seu projecto de doutoramento?
MAC - Eu interessei-me sobretudo por três aspectos: o olhar da sociedade francesa sobre os portugueses, o olhar da sociedade portuguesa sobre a emigração para França e o olhar da própria comunidade portuguesa em França sobre o país de acolhimento e o país de origem. Foi por isso que comecei por estudar uma emissão radiofónica do serviço público francês (ORTF) que foi difundida entre 1966 - logo depois da chegada massiva dos emigrantes a França - e 1992 - depois da nossa entrada na CEE. Procurei analisar a maneira como a sociedade francesa se preocupou, em primeiro lugar, em proporcionar mecanismos de integração, em traduzir tudo os procedimentos administrativos com os quais os portugueses não estavam habituados a lidar, como as férias, o abono de família e outros direitos e deveres. Portanto, nesse primeiro momento, o programa serviu sobretudo como antena de administração pública francesa. Mas houve outras fases. Por exemplo, a partir de 1980, a emissão radiofónica começou a ser difundida em língua francesa - mas foi uma experiência de pouca dura - procurando fomentar progressivamente a integração, de modo a que os portugueses deixassem de ser apenas portugueses e passassem a ser cidadãos europeus ou franceses de origem portuguesa. Não podemos perder de vista que a sociedade francesa é uma sociedade cujo o espaço público insiste muito na questão de integração e, por vezes, numa integração que é entendida como assimilação das populações oriundas de outros países. Com os portugueses também se colocou essa questão. Ao analisar a evolução dessa emissão radiofónica, é possível seguir a evolução política e social francesa e a alteração da sensibilidade relativamente aos portugueses. Nos anos 1980, muitos franceses consideram que "se os portugueses estão na União Europeia, então são europeus como nós. Não temos nada que estar aqui a patrocinar emissões em língua portuguesa, porque eles não precisam disso. Já estão integrados e mais do que integrado. Não faz sentido haver emissões portuguesas". Houve portanto uma evolução do olhar da sociedade francesa relativamente à imigração portuguesa.
A partir de 1992, precisamente no ano em que acaba esta emissão de rádio em França, vai para o ar a RTPi, o que me permitiu analisar a maneira como Portugal vê os portugueses em França e o(s) discurso(s) que tem sobre eles. Na primeira parte da minha tese de doutoramento - publicada em livro (Les Portugais de France face à leur télévision, Presses Universitaires de Rennes, 2009) - , procedi a uma análise do lugar da diáspora e da emigração na identidade nacional portuguesa desde o século XIX. Os discursos que temos hoje sobre "as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo" e os luso-descendentes vêm das décadas passadas. O termo luso-descendente já era aliás utilizado, embora não muito, durante o Estado Novo. Os discursos que hoje temos sobre Portugal, a emigração e a identidade nacional têm raízes históricas que é necessário analisar. No que se refere mais concretamente à RTP Internacional, analisei o discurso subjacente à programação, de modo a descobrir, por um lado, os diversos olhares sobre a emigração e, por outro, os discursos sobre Portugal. Não podemos esquecer que a emigração dos anos 1960/70 encobre situações pessoais extremamente duras, associadas à pobreza e à guerra colonial, entre outras razões. Neste contexto, emigrar deixa sempre uma certa mágoa interior. As pessoas não emigravam porque queriam estudar ou conhecer outros países e culturas; emigravam porque, naquele momento, consideravam que não havia condições objectivas para ter uma vida feliz na sua terra. É bom não esquecer que a emigração traz sempre consigo uma certa distanciação relativamente ao país de origem, mesmo que depois se volte lá todos os anos. Essa distanciação cultural, linguística, e por vezes afectiva, vai-se instalando progressivamente.
Assim sendo, a RTP procurou atenuar essa distanciação relativa na 1ª geração e, muito mais pronunciada, na 2ª e 3ª gerações. Quem vê a RTPi - e foi isso que me chamou a atenção quando me instalei em Paris - percebe que o discurso não é bem o mesmo dos canais nacionais. Embora seja um canal da RTP, os programas escolhidos são diferentes. É evidente que se pode argumentar - e de facto é verdade - que há certos programas que não podem ser difundidos para o estrangeiro por causa de direitos de autor, mas há igualmente uma vontade deliberada de mostrar à emigração um Portugal que é um país simultaneamente com história, tradição e modernidade. No final dos anos 90, os próprios estúdios eram decorados com as cores da bandeira nacional, o que não acontecia, como é evidente, na RTP1 e RTP2. Os nomes das emissões recorriam a um vocabulário que não classificaria de completamente nacionalista, mas que se referia quase sempre às raízes culturais (Portugal, "luso", etc...). As imagens dos genéricos mostravam quase sempre o Padrão dos Descobrimentos, a Ponte D. Luís, os castelos, as praias, os agricultores, remetendo para a tradição e a história, como se houvesse uma vontade deliberada de dizer: "não esqueçam Portugal". De facto, embora algumas dessas emissões também fossem difundidas em Portugal - enquanto outras se destinavam apenas à emigração - o que fazia a especificidade da RTP Internacional é que elas estavam todas lá. Na RTP 1 e na RTP 2 passavam mais despercebidas, estando espalhadas pela programação, junto de produções estrangeiras (americana, brasileira, etc.). Na RTPi, há uma concentração de "lusitanidade", de portugalidade, ou como queiramos chamar esse fenómeno. As ficções como Ballet Rose, Alves dos Reis, Os Távora, A Ferreirinha, João Semana e Pedro e Inês, entre outras - todas elas foram difundidas duas, três ou mais vezes na RTP Internacional - relembravam o Portugal das tradições e a nossa história. As rubricas turísticas e sobre o património cultural e gastronómico passavam todos os dias como auto-promoção, uma vez que não havia muita publicidade. Semana após semana, essas mesmas rubricas eram repetidas vezes sem conta, relembrando o Portugal da tradição.
Procurei analisar a programação sem juízos de valor, mas o que é facto é que uma das críticas endereçadas à RTP Internacional tem precisamente a ver com um conteúdo muito tradicionalista, muito virada para a 1ª geração. Todavia, é preciso reconhecer que, ao lado da tradição e da história, havia também a vontade de actualizar o imaginário colectivo da emigração. Havia uma vontade deliberada de dizer aos emigrantes: "Portugal é isto, mas Portugal também mudou. Portugal é um país moderno, é um país de imigração [até há uns cinco, seis anos insistia-se muito nesta tecla] e menos de emigração. Entrámos na Europa. Somos um país moderno. Estamos no Euro". Por isso, uma série de emissões apostavam em mostrar esse novo Portugal. A informação (Telejornal, Jornal da Tarde e programas de debate) também fazia parte desse aggiornamento dos portugueses no estrangeiro. Havia verdadeiramente uma vontade de mostrar que Portugal mudou. A própria publicidade utilizava os símbolos da Ponte Vasco da Gama, dos estádios do Euro 2004, das auto-estradas. Exibia-se um Portugal diferente de antigamente, do imaginário da aldeia. Através de emissões de debates como o Prós e Contras, os portugueses que residiam no estrangeiro podiam actualizar diariamente os seus conhecimentos sobre Portugal. Antes do aparecimento da RTPi, embora houvesse a rádio, a informação só chegava muitas vezes dois ou três dias depois. Ainda por cima, as estatísticas mostram que os emigrantes lêem pouco a imprensa nacional. Vendia-se apenas algumas centenas de exemplares por dia em toda a França, o que é irrisório. Compravam sobretudo jornais desportivos e recebiam a imprensa regional. Por isso, a informação da RTPi permitiu que os portugueses em França tivessem um contacto quotidiano e contínuo com a realidade portuguesa.
A nossa análise permitiu-nos também aferir qual é o olhar de Portugal sobre a emigração. Por exemplo, a Caixa Geral de Depósitos foi apresentando uma série de publicidades endereçadas especificamente à emigração. Eram difundidas em Portugal apenas nos meses de Julho e Agosto, mas passavam na RTP Internacional todos os dias do ano antes do Telejornal e do Jornal da Tarde, o que perfaz centenas e centenas de difusões. Examinei as campanhas da Caixa Geral de Depósitos de 2002 a 2006, nas quais estavam patentes algumas imagens que os portugueses residentes em Portugal têm sobre a emigração. Não me pronuncio, neste contexto, se estas imagens correspondem ou não à realidade. O que me interessa aqui analisar é toda a simbologia associada às "comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo". Tal como esta expressão, uma série de simbolos alimentam o discurso que "não somos um pequeno país", como antes estava impresso nos mapas de Portugal pendurados nos muros das escolas primárias. O discurso sobre emigração passa, por um lado, um pouco por essa retórica da disseminação e, por outro, do enraizamento, uma vez que se insiste no facto de que os portugueses espalhados pelo mundo continuam maioritariamente fiéis às suas origens. Muitas vezes é verdade, mas nem sempre é assim.
Depois, a RTPi difundia também o discurso do trabalho e do sucesso. É interessante ver que, paulatinamente, esse discurso foi retomado pelos canais portugueses de acesso livre (RTP1, RTP2, SIC e TVI). Em 2004, quando a Teresa Kerry, mulher do candidato democrata, se perfilava como a futura primeira dama dos Estados Unidos, os media portugueses insistiram até à exaustão nas suas origens portuguesas, embora ela própria nunca tenha abordado essa questão. Para além das edições especiais de cada 10 de Junho, havia um conjunto de documentários como, por exemplo "Portugal. Retratos de Sucesso" (2005), nos quais se mostrava os portugueses que estavam fora e tinham sucesso, sobretudo os artistas, desportistas, empresários, políticos e universitários, entre outros. Hoje, quase toda a gente conhece os grandes artistas e investigadores portugueses a residir no estrangeiro. Mas foi sobretudo a partir de 1992 que, de forma progressiva, a RTP Internacional "obrigou"a RTP casa mãe a falar mais da emigração. Começa então a haver emissões conjuntas, directos partilhados. Um estudo de Felisbela Lopes mostra que, em 1992, as referências internas à diáspora eram ínfimas, quase confinadas aos meses de Agosto e Dezembro. Hoje, não há praticamente dia nenhum em que não se fale de luso-descendentes, de emigração. Mesmo quando há um grande acontecimento no estrangeiro (acidente, cerimónia, etc) que nada tem a ver com a diáspora, procura-se saber se há portugueses ou não envolvidos. Em suma, a RTP Internacional também permitiu que em Portugal se falasse mais e se conhecesse melhor a emigração e a diáspora.
OEm - Agora surge-me a pergunta: porque é que a RTP Internacional foi criada em 1992?
MAC - Desde 1955, o primeiro texto legislativo sobre a RTP evoca a possibilidade do serviço público de televisão poder ser estendida ao Ultramar e às Ilhas adjacentes, como se dizia na altura. Desde 1976, praticamente todos os programas de governo consideram que a RTP deve ter em conta a emigração. A RTP Internacional só começou em 1992 porque o acesso ao satélite é então menos dispendioso e por uma série doutras razões conjunturais que fazem com que esse período seja marcado pela restruturação do panorama audiovisual em Portugal, com a criação dos canais privados, por exemplo. É só a partir desse momento que a diáspora começa a ser uma verdadeira prioridade do serviço público. Hoje em dia, quando se fala da redifinição do serviço público, há pouca gente que ponha em causa a existência da RTP Internacional. Podem discordar da programação, mas há uma unanimidade em todo o espectro político e social em torno da sua legitimidade. Só foi criada em 1992, porque só nessa altura é que estavam reunidas as condições técnicas, financeiras e políticas. Até ao final da década de 1980, as atenções estavam muito mais centradas na redefinição audiovisual interna.
OEm - E será que, politicamente, depois da entrada na UE, ao entender-se que Portugal estaria a "mudar para melhor", deixava de haver vergonha no reconhecimento da existência da emigração? Será também por aí?
MAC - Não fiz propriamente essa reflexão, mas faz todo o sentido que assim seja, até porque o fluxo anual para o exterior passa então a ser menor. Passamos a fazer parte da União Europeia e começa a aparecer nas luzes da ribalta uma 2ª geração associada ao sucesso académico, económico, político e desportivo. Como temos menos emigração, consideramos então que já não estamos ao nível de outros países mais dependentes do envio remessas. As comunidades portugueses começam a ser vistas mais como lóbis em França, nos Estados Unidos e noutros países.
OEm - Pois, portanto a ideia é que há que enaltecer e não ignorar...
MAC - Com certeza. É verdade que, por exemplo, antigamente se falava mais do peso remessas, mas hoje volta-se a ter em conta que não se pode desprezar esse dinheiro que entra em Portugal As estatísticas do Banco de Portugal são escrutinadas trimestre após trimestre. Em Setembro de 2001, aquando dum estágio de observação que fiz na RTP Internacional, um dos responsáveis do canal dizia-me: "é evidente que não vamos pôr no ar uma emissão em que uma equipa de televisão segue a polícia nos bairros mais problemáticos de Lisboa". E dizia-me ainda: "não vamos mostrar este tipo de emissão porque a RTP Internacional é uma vitrine do melhor que há em Portugal. Para além do mais, os emigrantes já têm acesso a esse realidade através do Telejornal. Não é preciso vincá-la ainda mais". Havia então essa vontade de mostrar o que de melhor há em Portugal, sensibilizando também a segunda geração para o turismo e outros tipos de investimento.
Relativamente ao conteúdo, outra questão que me parece interessante tem a ver com aquilo a que chamo de "directo partilhado", i.e., a partir do momento em que houve uma série de emissões e talk shows difundidos diariamente e simultaneamente em Portugal e na emigração instaurou-se uma espécie de diálogo. Podemos estar ou não de acordo com esse tipo de formato, mas é inegável que se estabeleceu um certo diálogo entre os portugueses residentes em Portugal e os portugueses que vivem no estrangeiro. Embora esse movimento se tenha iniciado no serviço público, foi-se estendendo progressivamente aos canais privados. Telenovelas, emissões de real tv como a Quinta das Celebridades e Casa dos Segredos ou de cariz juvenil como os Morangos com Açucar integram doravante luso-descendentes ou pessoas que representam a emigração... Lembro-me inclusivamente de uma telenovela da SIC, "O Olhar da Serpente", que envolveu filmagens junto da comunidade portuguesa em Paris. Passou a haver uma maior noção de que Portugal também é constituído pelos portugueses do exterior, não apenas no discurso mas também na prática. Relativamente à visibilidade da diáspora em Portugal, os canais privados foram um pouco atrás do serviço público.
OEm - Num dos seus trabalhos fala em diferentes categorias, como "2ª geração", "luso-descendentes" e "portugueses". A pergunta que eu tinha aqui era se essas distinções se faziam em relação à recepção dos meios, ou se estendem para além disso. A minha dúvida coloca-se essencialmente na distinção entre 2ª geração e luso-descendentes...
MAC - Confesso que tive uma certa dificuldade em dar um nome a esses diferentes tipos de públicos. Hoje em dia, há uma 2ª e 3ª geração de portugueses que é completamente indiferente àquilo que se passa em Portugal e com os portugueses. Mas também há uma 2ª e 3ª geração que aprende a tocar concertina e integra ranchos folclóricos, o que a maior parte dos seus pais não fazia. E há ainda uma 2ª e 3ª geração mais virada para uma cultura erudita ou para a música pop e rock portuguesa, etc. Quero com isso dizer que não há uma 2ª ou 3ª geração homogénea. Há diversos públicos no seio de cada uma dessas gerações. No âmbito da minha tese, mais concretamente do estudo da recepção da RTP Internacional, escolhi essas três denominações. Fiz entrevistas no seio de famílias. Entrevistava individualmente todas as pessoas do núcleo familiar.
No caso específico dste trabalho, o termo "2ª geração" não engloba todos os filhos de emigrantes. Aqueles que apelido aqui de "2ª geração" nasceram em França e mantêm uma certa ligação a Portugal - alguns deles vêm cá todos os anos - mas sentem-se mais franceses do que portugueses. Têm muitas vezes duas nacionalidades e assumem duas pertenças, mas sentem-se e são sobretudo vistos como portugueses em França e franceses em Portugal. Embora estejam um pouco ligados a Portugal, cultivam também uma certa distanciação. Não raro, desconhecem a história da emigração familiar dos pais. A imagem que têm de Portugal é, por vezes, ainda a da aldeia e das férias. Não conhecem muito mais. Depois, quando vêm a Portugal, sentem o peso do olhar dos portugueses sobre eles. Convivem com um olhar um pouco discriminatório, pelo facto de não falarem tão bem a língua, o que contribui para não se sentirem plenamente portugueses de corpo inteiro. Todavia, sentem também um certo orgulho em serem portugueses. Essa dualidade não é contraditória, depende dos contextos, daquilo que o sociólogo Erving Goffman apelida de quadros de interacção e da apresentação do eu na vida quotidiana. Esses membros da 2ª geração são, ora críticos relativamente a Portugal, ora capazes de ir festejar para os Campos Elíseos uma vitória da selecção nacional. Estamos perante uma utilização selectiva das raízes que lhes permite sentirem-se orgulhosos das suas origens no espaço público francês. Outro exemplo é a relação com o extinto programa Contra Informação. Em França, há Les Guignols de l'Info, uma emissão muito semelhante, embora esteticamente diferente. Estes membros da segunda geração conheciam as duas e não achavam piada ao Contra Informação, o que traduzia uma certa distanciação cultural relativamente a Portugal, até porque não conheciam todas as personagens, nem dominavam todas as nuances da linguagem. É um fenómeno complexo. Como ilustrou muito bem a antropóloga Irène Santos, há jovens da 2ª geração que frequentam discotecas portuguesas na região de Paris e que, nas férias, procuram discotecas na zona de Coimbra para ouvir música francesa... Há uma espécie de dicotomia.
Também identifiquei um outro grupo constituído pelos "luso-descendentes". Esta denominação é utilizada pelo Estado português para dizer que as segundas e terceiras gerações de portugueses no estrangeiro são fiéis às raízes lusitanas. E, de facto, há luso-descendentes que assumem e reivindicam plenamente a sua fidelidade às origens. Embora em França este termo tenha sido vulgarizado por uma associação de jovens com cursos superiores (Cap Magellan), no meu estudo apelido de "luso-descendentes" os jovens que se identificam mais com a cultura popular. São estes jovens que escreviam mensagens electrónicas à RTP dizendo: "quero voltar para Portugal para fazer um curso de pintura sobre azulejo, dêem-me informações" ou "frequento tal universidade francesa e pretendo organizar uma sessão de promoção da língua portuguesa, enviem-me material". São jovens da segunda ou da terceira gerações que se reivindicam como sendo totalmente portugueses. Alguns querem "regressar" a Portugal, mas outros não. De maneira geral, estão mais ligados ao folclore, ao futebol e à cultura popular tradicional, mas também conhecem a música pop e outras manifestações culturais. Daí tê-los chamado "luso-descendentes".
Há diferenças socioculturais notórias entre os "luso-desendentes" e aqueles que apelidei de "portugueses" ou "jovens diplomados" (embora nos outros grupos também houvesse jovens com percursos universitários). Este último grupo é constituído por jovens, alguns dos quais nascidos em França mas tendo vivido algum tempo em Portugal, que partilham o seguinte discurso: "Não sou emigrante, sou português. Não sou francês, não quis a nacionalidade francesa. Também não me dou com essa gente". Quem era essa gente? A comunidade portuguesa radicada em França. Diziam isso no sentido de "eu não me identifico com a cultura popular, o folclore, a música pimba"; "identifico-me com Portugal, mas tenho uma visão actualizada de Portugal". Não quer dizer que fossem propriamente pedantes, mas sentiam uma necessidade imperiosa de se demarcar dum certo tipo de emigração.
OEm - E isso relaciona-se com serem de uma emigração mais recente, serem qualificados, ou ambas?
MAC - Constituem uma minoria dos jovens que entrevistei, mas todos tinham percursos universitários, alguns dos quais em cursos de língua e cultura portuguesa, trabalhando por vezes em empresas ligadas a Portugal. Alguns viveram dois ou três anos em Portugal quando os pais tentaram um regresso definitivo que não deu certo. Penso que o percurso universitário tem uma certa influência. Diziam "eu vejo muito pouco a RTPi, porque é o canal dos emigrantes. Vejo um pouco o Telejornal com o meu pai, mas o resto não me interessa. Eu prefiro ir à Net, em função dos meus interesses ou ver os outros canais portugueses do cabo". É um discurso partilhado, embora nos jovens fosse mais crítico, com aquele que chamei "expatriados", sendo estes membros da 1ª geração. Na tese, juntei estes dois públicos, os expatriados e os jovens diplomados ou portugueses.
Os expatriados são aqueles que foram trabalhar para França numa empresa portuguesa ou para dar aulas de português. Têm também o discurso do "eu não sou emigrante, sou português", mas com uma visão menos crítica relativa à emigração. Dizem "agora que estou fora do país percebo melhor alguns comportamentos dos emigrantes, da 1ª geração, mas isso não quer dizer que me identifique plenamente com eles".
OEm - Agora ficou clara a distinção para mim.
Eu agora tenho algumas perguntas soltas sobre as suas pesquisas. Refere que, na altura do 25 de Abril, quando se debate a democracia, é um momento chave na construção do público emigrante português, no que respeita a emissões radiofónicas. É porque a partir daí se podem assumir como emigrantes e deixa de haver a preocupação com a clandestinidade e com a ilegalidade? Esta é uma das razões?
MAC - É isso e não só. Numa das entrevistas publicadas no vosso site, o historiador Victor Pereira relembra como se tinha exportado o medo da Pide até aos bairros de lata da região parisiense. Temos de ter em conta que, antes do 25 de Abril, muitos não podiam regressar a Portugal porque não tinham a situação militar em dia. Por outro lado, até ao final dos anos 1970, os portugueses não se podiam sindicalizar em França. Nos dois países, estavam privados de um certo número de direitos, pelo que são levados a não aparecer muito no espaço público, nem a reivindicar-se muito como portugueses.
O 25 de Abril foi muito mediatizado em França. Portugal ocupava então as manchetes dos jornais, pois materializava a esperança de mudança na Europa, sobretudo para uma certa esquerda. Pela primeira vez, o espaço público francês começou a olhar para os emigrantes doutra forma. Pela primeira vez, "foram tidos e achados" e puderam falar mais livremente sobre eles próprios e o que se passava em Portugal. Na emissão de rádio da ORTF, por exemplo, quer os apoiantes de Marcelo Caetano, quer os defensores da democracia, apresentavam os seus argumentos. A maior parte destes ouvintes nunca tinha votado, nem sequer dado alguma vez a sua opinião em público (embora esta emissão fosse pública, era quase só ouvida pelos portugueses, constituindo praticamente um espaço privado, semi-público).
Por outro lado, num estudo ainda não publicado, analisei a imagem dos portugueses na televisão francesa desde os anos 1960 até hoje. No início, falava-se muito pouco dos portugueses. Quando acontecia, era sobretudo a propósito dos bairros de lata, das dificuldades de integração ou de um faits-divers. Mas os portugueses não tomavam a palavra na televisão. Não há propriamente entrevistas ou são muito raras. Depois da Revolução dos Cravos, quando, por exemplo, Ramalho Eanes visita uma fábrica da Renault, o Telejornal francês mostra o presidente da República a falar com emigrantes operários. Encontrei mesmo um Jornal da Tarde de 1979 em que um casal emigrante está presente no estúdio do início ao fim. Trata-se de mulher-a-dias e de um barman. De facto, entre 1974 e 1979/80, os emigrantes portugueses adquiram uma certa visibilidade na televisão, o que faz com que se assumam mais como comunidade no âmbito do espaço público francês. Anteriormente, tratava-se mais duma comunidade fechada sobre si, como nos bairros de lata, nas comunidades católicas, nas associações culturais de então. Doravante, mostram-se enquanto comunidade aos restantes membros do espaço público. Por isso, digo que se trata de um período charneira para a afirmação colectiva dos portugueses em França, esteja-se ou não de acordo com o próprio termo de "comunidade".
OEm - A determinda altura num dos seus artigos diz que nos anos 1990 começam a chegar cartas aos meios radiofónicos, vindas de Portugal, de emigrantes que entretanto teriam regressado, que quereriam manter o contacto com a sociedade que os tinha acolhido. E depois também diz que chegavam cartas à Radio France International, da parte de estrangeiros que ouviam as emissões para aprenderem português. Isto lembrou-me um argumento político de que o investimento no ensino do português no estrangeiro deve visar os estrangeiros como público, também, e não apenas os portugueses e os luso-descendentes. Aqui perguntava mais a a sua opinião...
MAC - Penso muitas vezes nesse assunto, até porque tenho uma filha que esteve a frequentar aulas de português e hoje não pode fazê-lo. Em França, a língua portuguesa continua a ser um pouco estigmatizada como uma língua de emigração. É mais "chique" estudar japonês ou chinês. Aliás, alguns directores de escola não vêem com bons olhos a integração do português no curriculum dos seus estabelecimentos de ensino. Preferem italiano, alemão ou chinês. Embora tenha havido algumas campanhas para contrariar essa tendência, o português continua a ser rotulado como língua de emigração. Outro dos grandes problemas é o facto de haver cada vez menos professores de português. Ainda este ano lectivo, o Governo português retirou professores da região de Paris, com as aulas iniciadas e sem avisar previamente os encarregados de educação. Portugal está desinvestir da língua portuguesa, por razões sobejamente conhecidas, mas não pode esperar que sejam os países de acolhimento a fazê-lo. Quando a minha filha frequentava as aulas de português, todos os alunos da turma eram filhos ou netos de portugueses. De facto, há muito pouca gente que não seja de origem portuguesa a estudar português. Alguma coisa foi feita, mas ainda há muito a fazer para que o português exista para além da emigração e da 1ª, 2ª e 3ª gerações.
OEm - Eu tinha noção de que, a fazer esta pergunta, estava a ir além do que estudou...
A propósito do projecto em que esteve envolvido, sobre a reforma dos portugueses em França, terá alguma percepção sobre se actualmente haverá algum fluxo de emigração portuguesa para lá. As estatísticas em França são difíceis de obter, não têm estado actualizadas, e daí também a maior importância da pergunta... Tem a percepção de ter havido uma reanimação do fluxo?
MAC - Eu tenho a certeza que há, mas não sei em que proporções. O que eu sei é que basta ir fazer as compras a um hipermercado para ouvir falar distintamente um português sem sotaque e com a fluidez de quem esteve em Portugal muitos anos ou ver diariamente as matrículas portuguesas para perceber que uma nova vaga de emigração está a chegar. Só tenho a experiência da região de Paris. É difícil ter estatísticas fiáveis, até porque foi sempre complicado saber exactamente quantos portugueses vivem em França, devido às questões de dupla nacionalidade. Ainda este fim-de-semana, tive o conhecimento de um casal português que foi à procura de trabalho. Só conseguiram emprego e guarida porque um casal português mais velho - que não conheciam anteriormente -, que está lá há 30 ou 40 anos, decidiu ajudá-los. Há casos bem distintos. Através da Santa Casa da Misericórdia de Paris, com a qual colabora, vejos os e-mails de pessoas que se encontram em situação muito difícil, sem recursos, sem trabalho, sem esperança. Outros conseguem integrar-se graças à redes de conhecimentos, amigos ou familiares
OEm - E é difícil avançar com os perfis dessas pessoas...?
MAC - É dificil ser muito preciso. Voltámos a ter uma emigração económica, embora diferente da dos anos 1960, porque uma parte destes emigrantes tem um percurso universitário. Há, por exemplo, jornalistas portugueses que apresentam candidaturas para trabalhar em orgãos de comunicação social da comunidade. Antes, isso era impensável. Depois há também portugueses com menos qualificação que partem à aventura, tendo alguns sido inclusivamente encontrados em cantinas sociais. Outros conseguem encontrar rapidamente emprego junto de compatriotas. Outros são explorados, por vezes pelos próprios compatriotas...
OEm - E diga-me, por favor, assim como houve cá em Portugal os censos de 2011, houve também em França? Avizinha-se a possibilidade de termos estatísticas mais actualizadas?
MAC - Os censos em França já não são de 10 em 10 anos. O último de década foi em 1999 e agora, salvo erro, há estatísticas relativas a 2005 e 2009.
OEm - Pois, nós temos isso, sim.
MAC - Vão sendo actualizadas regularmente, quer a nível nacional, quer regional.
Cite as Pinho, Filipa (2012), "A importância da RTP Internacional para a emigração. Entrevista a Manuel Antunes da Cunha", Observatório da Emigração, 4 de Novembro de 2011. http://observatorioemigracao.pt/np4EN/4689.html